segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Minha vida de editor: pérolas infames

O meu verdadeiro terror como editor, além de pegar um texto sem pé nem cabeça ou repleto de erros para ser reescrito, eram as pérolas. São frases escritas pelo repórter que soam absurdas e engraçadas, seja pelo uso de uma palavra "deslocada" ou de expressões trocadas.

Durante meus anos de redação como editor, deparei-me com várias dessas verdadeiras infâmias, até que chegou um tempo em que resolvi colecioná-las. Criei um arquivo e para ali copiei as pérolas da minha equipe. Foi uma forma de chamar a atenção do repórter e lhe dar um puxão de orelha para ter mais cuidado com o que escrevia. Funcionou, na maioria das vezes. E acabou virando nossa própria diversão (claro que eu não identifiquei os autores nem o farei agora, mas cada um sabia do seu lapso).

Um primeiro exemplo de abismar: uma repórter usou a expressão "tráfego de drogas". Veio-me à mente uma autoestrada em que as trouxinhas de cocaína disputavam espaço com cigarros de maconha e seringas de heroína, como se fosse um quadro bem surreal que deixaria Salvador Dali com inveja. Em outra situação a jornalista usou a expressão "o buraco tinha quatro metros de altura". Certo? Errado? Depende do ponto de vista. Creio que ela entrou no buraco, olhou para cima e calculou a altura. Mas, obviamente, tal coisa não aconteceu e foi pura falta de atenção na hora de escrever, e em vez de "profundidade", o termo usado foi "altura". Mais uma clássica: "a escada era alta a ponto de causar vestígios". Foi o fim da picada. Outro escreveu "o cidadão foi atingido por um soco no lado esquerdo do olho". Tétrico!!!! Como essas, havia dezenas de outras, mas infelizmente perdi meu arquivo quando estava no jornal O Estado do Amazonas, porém é possível sentir o drama pelo qual passei. Sem falar nos erros de sempre: "elo de ligação", "erário público" e por aí vai.

Quando não eram expressões erradas ou absurdas, eram situações aparentemente dramatizadas de forma proposital, mas que soavam ridículas. Citarei duas que são o "must" da falta de bom senso. No primeiro caso, o repórter escreveu uma matéria sobre um acidente sofrido por um motoqueiro, o qual trabalhava como entregador de pizzas. Em certa hora da noite, o entregador passava por uma determinada rua em Manaus quando surgiu em sua frente um cachorro (bom, aparentemente o animal se materializou diante do motoqueiro). O coitado do rapaz foi desviar e acabou perdendo o equilíbrio e se estatelando no chão, e as pizzas se espalharam pelo asfalto. Populares da área correram para acudir o rapaz. A história terminaria aí, não fosse o gran finale: "o cão ainda voltou ao local e comeu várias pizzas". Até hoje meu amigo Marcelo Brasil se emociona com tamanha pérola! Eu ficava em dúvida entre rir ou chorar.

O segundo caso conseguiu ser mais surreal ainda. Segundo o repórter, houve um acidente envolvendo um ônibus do antigo sistema Expresso, daqueles articulados enormes (a maioria transformados em cacarecos assustadores que ainda circulam). Em sua história, ele afirmou que o coletivo partiu-se em dois. Várias pessoas que estavam justamente no ponto articulado do veículo caíram e se machucaram bastante. E o resto? O jornalista escreveu que "a outra metade foi embora levando os demais passageiros". Difícil mentalizar tal disparate. Creio que o repórter havia assistido o filme "As incríveis peripécias do ônibus atômico", onde isso realmente acontecia. Mas ficção é ficção.

Para encerrar, um caso incrível que eu nunca havia visto antes. O repórter conseguiu um "furo", uma entrevista com um traficante de drogas chamado Keka, detido pela polícia. Seguem os trechos finais do pingue-pongue, como foram escritos, e que me assombram até hoje:

"Repórter - Mas conte para nós, Keka: quem mais está envolvido no tráfico de drogas em Manaus?

Keka - Vai te fuder, meu irmão. Quer que eu me ferre? Quer me prejudicar? Podem me matar por isso. Vai pra puta que te pariu!

Repórter - Não é isso, Keka. É que queremos ajudar na luta contra o flagelo das drogas"

Tenho ou não razão em dizer que é o mais puro terror para um editor?

domingo, 26 de agosto de 2012

Minha vida de repórter: pautas furadas

Se algum repórter disser que nunca pegou uma pauta furada ou ridícula, daquelas capazes de colocá-lo em uma situação constrangedora até, está mentindo. Acontece, e como! Na minha época de repórter do jornal Amazonas em Tempo, foi o que mais me ocorreu. Íamos atrás do ouro e voltávamos com ouro de tolo. Foram muitas furadas, mas três são dignas de serem lembradas.

Invasões
De vez em quando pipocavam invasões em Manaus, e lá íamos cobrir. Algumas rendiam um ótimo material, quando a área invadida era de preservação e havia conflitos. Em 2000, recebi uma pauta sobre um terreno invadido na estrada da Ponta Negra, onde hoje existe um posto de gasolina, nas proximidades do hipermercado DB. Chegamos ao local, eu e Danilo Mello, e estranhamos a calmaria. O terreno era cercado por um muro de tijolos, mas, fora um segurança na entrada, estava vazio. Será que fomos ao local errado? Perguntei ao segurança e a resposta foi: algumas pessoas haviam tentado realmente invadir, mas foram logo impedidos e não houve maiores conflitos. Gasolina e tempo perdidos.

A febre dos patinetes
Essa pauta começou comigo, passou para a Márcia Daniella e depois para a Patrícia Almeida. Nunca foi feita. Nosso editor havia dito que Manaus passava por uma verdadeira febre de patinetes, e por todos os lugares viam-se crianças usando o brinquedo. Esse foi o problema. Onde fomos, nunca víamos as tais crianças e os tais patinetes. Procurei até nos mais distantes recantos de Manaus, inclusive no perigoso Bariri, uma região não muito digna de visitas até hoje. Tempos depois chegamos a uma conclusão: a febre dos patinetes acontecia somente no condomínio do editor. 

Dia de Finados
Em 2002, meu editor me passou uma pauta até interessante, inspirada em uma matéria retirada da Agência Estado, sobre histórias curiosas a respeito do Dia de Finados - rituais diferentes e casos insólitos. Gostei da ideia e sai em campo. Pior foi aguentar o olhar dos funcionários das funerárias quando eu me identificava e explicava qual era a matéria. Ou ninguém entendeu o espírito da coisa ou Manaus não tinha histórias para contar. Passei por umas cinco funerárias, e em somente uma consegui um "causo": segundo a gerente, dois funcionários foram buscar o cadáver de um idoso em um hospital. Na hora de erguer o morto pelos braços e pelos pés, o corpo soltou gases, o que fez com que um dos trabalhadores tomasse um tremendo susto, largasse as pernas do cadáver e saísse em disparada do local. Quase morri de rir da história. No entanto, por tão pouca quantidade de informação, a matéria não foi escrita. Mais uma pauta furada para minha coleção.

Trabalho de repórter é isso aí!!!!




Minha vida de foca: baixaria no Katikero

Era uma noite de domingo em 1996. Plantão no Jornal do Norte. Lembro que eram quase 21h e eu já estava de saída para casa quando o diretor de redação Hiel Levy me chamou. Confusão no bar Katikero, maior quebradeira, briga e blá-blá-blá. Fui à missão acompanhado do repórter fotográfico Alberto César Araújo.

O bar Katikero existe até hoje. Fica localizado na avenida Floriano Peixoto, Centro de Manaus, a poucos metros do cruzamento com a rua José Paranaguá, nas proximidades do antigo quartel da Polícia Militar. Não chega a ser um lugar mal frequentado: é um dos raros pontos de encontro ainda resistentes no Centro, reunindo trabalhadores daquela área para um happy hour, e até funciona como restaurante salvo engano.

Naquela noite em questão, ao nos aproximarmos, o cenário era bem diferente. Em vez de polícia, curiosos, mesas jogadas, garrafas quebradas e tudo o que possa lembrar um campo de batalha urbano, só havia um homem parado em frente ao bar. E este estava fechado. Não entendi mais nada, porém fomos até o cidadão e vimos que se tratava do Celso, na época editor executivo do Jornal do Norte.

Celso estava parado na calçada do Katikero, em pé. Aos seus pés, um pequeno maço de dinheiro - notas de R$ 10, R$ 5 e R$ 1, se bem me lembro. Ele havia ligado para a redação. O problema: depois de ter tomado uma ou duas cervejas, ele dera uma nota de R$ 50 para pagar. No entanto, o troco viera incompleto. Faltavam exatos 25 centavos!

Era isso. O circo estava armado por causa de 25 centavos que faltavam para completar o troco. Inacreditável que eu e Alberto estávamos ali por conta da birra do colega. Em vez de gente ferida, garrafas quebradas e todo tipo de dano que uma baderna em boteco pode gerar, estava o editor do jornal inconformado em não receber míseros 25 centavos de troco. Ainda fossem R$ 25, eu até entenderia. Mas vida de foca é uma desgraça: fosse hoje, eu daria ao chefe o tão choramingado dinheirinho para encerrar aquela papagaiada. O jeito era esperar para ver.

Mas a pauta idiota não foi nada. Pior foi a baixaria que se seguiu. O dono do bar morava no prédio onde funciona o Katikero (não sei se hoje ele ainda reside lá ou se permanece proprietário do boteco) e viu, lá de cima, a movimentação do cliente chato e da equipe de repórteres. Ele já desceu com 200 pedras na mão, esculhambando todo mundo. Eu fiquei de braços cruzados observando a cena. Sobrou para o Alberto, coitado. O cidadão, que tinha quase uns dois metros de altura, achou que o fotógrafo havia tirado fotos dele, agarrou-o pelos braços e o sacudiu, ameaçando-o caso fosse publicado algo, apesar de Alberto haver garantido não ter feito fotografia alguma. Foi um corre daqui e dali para acalmar o elemento, até a esposa dele se meteu para acalmar a besta fera. Enquanto isso, Celso somente dava um sorriso debochado. Satisfeito em ter irritado o cidadão, recolheu seu rico dinheirinho e foi embora. Voltamos para a redação, eu e o Alberto, fulos da vida, contamos o que havia acontecido e pronto. Muitas risadas, nada de matéria, nada de fotos, nada de nada. Plantão encerrado.

Nem preciso dizer que essa aventura frustrada foi a gozação da semana para mim e para o Alberto, que quase apanha por causa do falso alarme criado pelo nosso chefe maluco. Nunca havia sequer entrado no Katikero, mas depois daquela palhaçada toda nem fiz questão. Quanto ao Celso, algum tempo depois foi demitido ou pediu demissão do jornal, não lembro ao certo. Eu só pude dizer: "já vai tarde". E levou minha vontade de esganá-lo.

Comentário: "Precisamos falar sobre o Kevin" (We need to talk about Kevin, 2011)

Tilda Swinton e Ezra Miller em cena do filme
Ler a sinopse de "Precisamos falar sobre o Kevin", filme de Lynne Ramsay lançado em 2011, foi o suficiente para minha busca pelo download do filme. A mãe de um jovem que comete assassinato em massa em sua escola tenta compreender o que poderia ter levado o filho a um ato tão selvagem. Dois nomes no elenco já chamaram minha atenção: Tilda Swinton ("Queime depois de ler", "As crônicas de Nárnia" e "Constantine") e John C. Reilly ("Boogie Nights" e "Magnólia"), atores competentes e dignos de premiações.

Na cena inicial, vista de cima, uma multidão se aglomera em algum lugar não especificado, todos jogando um líquido vermelho (sangue? tinta?) uns nos outros, e no meio dessa confusão humana emerge Eva (Tilda Swinton), carregada pela multidão, pregada em uma cruz imaginária. Logo se vê que se tratava de um sonho. Eva desperta em sua pequena casa e descobre que o imóvel foi todo manchado de tinta vermelha. Obra da vizinhança que a repudia e hostiliza, chegando ao ponto da agressão física: ao conseguir um emprego em uma agência de viagens, a satisfação de Eva é eliminada por uma mulher que a esbofeteia ao ver tamanha felicidade da mulher.

Toda essa hostilidade será explicada no decorrer do filme, que alterna a condição atual de Eva com fragmentos de sua vida a partir do nascimento de Kevin. Nessas idas e vindas temporais da trama, Eva tentará compreender sua relação com o menino, tumultuada desde o princípio. Kevin chora constantemente, a ponto de a mãe preferir o barulho ensurdecedor de uma britadeira que sufoca os gritos do bebê. 

À medida que o tempo passa, o menino vai se tornando arredio com a mãe, mas convive bem com o pai Franklin (John C. Reilly). O garoto parece ter o propósito de atormentar Eva: defeca nas fraldas recém trocadas que ainda usa por volta dos 4 anos para obrigá-la a trocá-lo constantemente, lambuza com tinta toda a decoração das paredes do quarto de Eva, feita com mapas, ignora a mãe e chega ao absurdo de permitir um acidente doméstico que causa a perda de um dos olhos da irmã menor, Celia, não sem antes matar o hamster da menina (as duas últimas situações não ficam explícitas, mas com muita atenção se compreende o que realmente ocorreu). 

Já adolescente, Kevin (Ezra Miller) parece dar uma trégua a Eva, apesar de provocá-la constantemente, como na sequência em que ela o flagra se masturbando no banheiro. Em vez de ficar constrangido, ele continua o ato encarando-a com ódio. A situação foge ao controle quando, na véspera do seu 16º aniversário, Kevin mata e fere dezenas de colegas a flechadas em sua escola, consumando a tragédia com a destruição de sua própria família.

Em vez de se prender ao massacre, o filme é uma busca de Eva pela compreensão de uma maldade que viu desde o início estampada nos olhos do filho. Desse modo, ficou claro que buscou como opção uma segunda gravidez, da qual nasceu Celia (Ursula Parker), para revolta inicial do marido, o qual sempre foi conivente com as atitudes do filho, buscando botar panos quentes no clima negativo entre mãe e filho. Nesses retrospectos, ela tenta lidar com a culpa ao mesmo tempo em que busca recomeçar a vida depois da tragédia.

"Precisamos falar sobre o Kevin" acabou sendo um filme impactante para mim. Perturbador e traumatizante, até. Mas é um ótimo trabalho sobre a maldade inata do ser humano e a nossa própria impotência diante de tanta perversidade.

sábado, 25 de agosto de 2012

Minha vida de editor: dois malucões no Estadão

De 2004 a 2006 fui editor do caderno Manaus, no jornal O Estado do Amazonas, e junto com o subeditor Ricardo Nixon (depois substituido pela Graciene Siqueira e posteriormente pelo Paulo Ricardo "Gavião", que segurou o pepino enquanto eu largava tudo e seguia para outros projetos como assessor de imprensa da Agência de Fomento do Estado do Amazonas), comandava um grupo inicial de 12 repórteres, número que, logo após a primeira avaliação inicial, ficou em torno de sete ou oito jornalistas na editoria de Cidades.

Foi uma experiência muito bacana, pois ali começaram vários bons repórteres que continuam na ativa nas redações, como Mário Adolfo Filho, Diogo Mouco (que não é surdo) e Fabíola Pascarelli. Também houve momentos, por assim dizer, marcantes. Em duas ocasiões, tive que encarar dois malucos, pessoas que foram supostamente fazer denúncias e que, no final das contas, tinham de um a cinco parafusos soltos.

O primeiro caso foi clássico, em certo dia de 2005. Um cidadão chegou à redação querendo fazer uma denúncia, pois segundo ele sua ex-mulher estaria impedindo que visse a filha. Era o tipo do drama humano que poderia dar em uma matéria no mínimo interessante. Encaminhei-o para a Rubia Balbi, que havia chegado de uma pauta e era a única disponível, enquanto eu editava o trabalho do pessoal da manhã.

Passaram-se menos de cinco minutos e lá vem a Rubinha, furiosa (e a Rúbia sempre foi um amor, então para tirá-la do sério a coisa era muito, muito feia).

- César, não dá para entrevistar esse cara! Ele não responde!

E o cidadão, logo atrás:

- Essa repórter não sabe ouvir as pessoas!

Para botar panos quentes no estresse, me encarreguei de entrevistá-lo. Rubinha voltou para escrever a sua matéria e pedi que o rapaz - inclusive de boa estampa e relativamente bem vestido - contasse sua história.

Logo nos primeiros cinco minutos de conversa percebi que o camarada era, no mínimo, esquizofrênico. Contou-me que havia se separado da mulher, a qual fugira com sua filha, depois que ele entrara para uma igreja (acho que era a Universal, até). Ele afirmava que tentara por várias vezes ver a menina, àquela altura morando em Parintins. Mas quando ele disse que no caminho de Manaus para Parintins desembarcara em Barcelos, senti que havia algo de errado: qualquer um sabe que Parintins e Barcelos ficam em regiões opostas e nossa capital fica no meio, então sair daqui para ir a Parintins passando por Barcelos, só sendo um bumerangue ou completamente sem noção de geografia. Nem mesmo rota de barco ou avião aqui na região seria tão desconexa.

Mas o pior estava por ir. Ouvi pacientemente toda a história, até que do nada o rapaz me saiu com essa:

- Sabia que já fui no programa do Faustão me apresentar porque me acharam parecido com o Raul Seixas?

Eu nem sabia o que dizer. Acabei me limitando à espontânea pergunta "É mesmo, é?".

- Isso! E canto igualzinho a ele!

Antes que eu dissesse qualquer coisa, o cidadão levantou da cadeira e começou a cantar bem alto:

- "Eu nasci / há dez mil anos atrás / e não tem nada neste mundo que eu não saiba demais!".

Detalhe: cantando e dançando em plena redação. Fiquei sem reação. Do jeito que eu estava, olhando para a tela do meu computador, eu permaneci, totalmente constrangido e incapaz até de piscar, enquanto o elemento continuava com o show. Mas, ao meu lado, os colegas Emanuela Lago e Paulo Ricardo "Gavião" explodiram em gargalhadas histéricas, daquelas típicas de quem controlou o riso por um tempo quase interminável.

Para acabar com a doidice ali, interrompi os devaneios do rapaz, pedindo-lhe que acompanhasse o fotógrafo Reinaldo Okita para que fosse uma foto na área externa do jornal. Assim eu me livrei do malucão, escrevi uma materinha meia boca de tanta raiva e ainda tive que aturar a gozação dos colegas. Ossos do ofício.

O segundo caso de doidice aconteceu naquele mesmo ano. O então editor executivo do Estadão, Sebastião Reis, recebera a visita de uma senhora, em torno dos 50 anos, em sua sala. Dali a pouco, ele me chama.

- César, tem algum repórter aí?

Não havia. E lá fui eu com bloco e caneta nas mãos.

A dita senhora, de atitudes bem distintas, queria fazer uma denúncia contra o governo federal. Até aí, tudo bem, mas dali a pouco ela começou a falar coisas absolutamente estranhas: que o Lula e sua esposa estavam vindo ao Amazonas para afrontá-la, que ele a perseguia, que não-sei-quem vinha atormentá-la subindo pelo seu fluxo menstrual. Eu havia anotado só o nome dela, mas depois de ouvir tantos absurdos, fiquei com a caneta parada sobre o papel.

Olhei discretamente para o Reis, que também me olhou. Nenhum dos dois conseguiu dizer mais nada, até a mulher continuar com seus devaneios até o fim. Depois, Reis a dispensou, prometendo que iria analisar as informações. Nem precisou me dizer mais nada. Apenas trocamos aquele olhar de "é isso aí. Fazer o quê? Doida de pedra". 

E assim uma segunda pessoa doida marcou minha passagem pelo jornal O Estado do Amazonas. Mas em breve, de volta ao Amazonas em Tempo, teríamos a Tábata. Essa, a Michele Gouvêa vai gostar de relembrar! Fica para outro dia!

Minha vida de repórter: os cães do diabo

Foi em 1999. O Jornal do Norte havia fechado as portas alguns anos antes, mas eu já havia saído de lá no final de 1996, em uma das primeiras demissões em massa que marcaram a derrocada de um veículo que trouxera a proposta de inovar, mas que em razão da péssima administração, foi para o buraco. Eu estava somente trabalhando na assessoria de imprensa da Universidade Federal do Amazonas (onde fiquei até pedir exoneração em 2004) e eventualmente me metendo em algum projeto novo de jornais (até que parei, cansado de levar calote) e freelas, quando o meu amigo Ricardo Nixon me chamou para um teste como repórter de Cidades no jornal Amazonas em Tempo (a primeira de várias idas e vindas nesse jornal que marcou muito minha vida profissional).

O editor de Cidades era o jornalista Augusto Banega, meu amigo até hoje e que fez parte do time de profissionais que me fizeram crescer profissionalmente. E foi assim que cheguei ao Amazonas em Tempo para um teste. E já comecei pagando mais um mico. Já não era mais foca, era um repórter "praticante", por assim dizer.

A pauta não poderia ser mais bizarra: uma senhora no conjunto Dom Pedro II estava sendo denunciada pelos vizinhos por criar pelo menos uns 15 cachorros em sua residência. Nada contra quem ama os bichinhos (eu os adoro também), mas o problema apontado pela vizinhança era a falta de cuidados. Os animais não eram devidamente cuidados, o fedor e o barulho incomodavam demais. Foi minha primeira pauta no Amazonas em Tempo e a primeira de muitas em que fui acompanhado de um profissional que se tornaria um amigo de aventuras na profissão, o repórter fotográfico Danilo Mello.

Chegamos à tal casa, sob o sol das 15h. O imóvel fica na principal avenida do conjunto, próximo à superintendência da Polícia Federal. Bati palmas ao portão, os cães já começaram a fazer a balbúrdia infernal. Verdadeiros cães do diabo! A mulher veio: gorda, cara de barraqueira. Educadamente falei sobre a denúncia feita pelos vizinhos e que gostaria de conversar com ela a respeito.

- Aqui não tem cachorro nenhum, não! Não tem nada aqui! - ela começou a dizer, alterada, descendo as escadas e fazendo menção de abrir o portão menor de entrada, na verdade uma grade. No terreno, os cachorros latiam, mas não era possível vê-los distintamente por causa do portão da garagem. Talvez a mulher fosse mouca ou retardada, até hoje não sei, mas os animais estavam ali, latindo como loucos, e a dita cuja continuou repetindo aos gritos que não havia cães em sua casa.

Tentei argumentar com ela, mas não teve jeito. A criatura virou as costas e voltou para dentro da casa, xingando Deus e o mundo. Lembro que havia uma jovem com ela, talvez sua filha, irmã, amante... sei lá. A garota ficou meio constrangida com aquilo tudo.

Enquanto eu tentava conversar com a mulher, Danilo procurava tirar fotos dos cães do diabo pela fresta do portão da garagem. Sem sucesso. Apelei para a opção de falar com a vizinhança. Curiosamente, nas duas casas vizinhas de cada lado do canil improvisado não havia ninguém. Procurei uns cidadãos que estavam observando tudo de longe, em um boteco. Confirmaram os problemas que a vizinha e seus cães do diabo causavam. Até carrapato era encontrado nos genitais das pessoas! No entanto, não quiseram dar entrevista.

Como última opção, procuramos os vizinhos da rua de trás. Uma senhora falou algumas coisas, confirmando a história do incômodo causado pelo barulho e pela falta de higiene nos cuidados com os bichinhos. Mas não quis se identificar.

Resultado: voltamos para o jornal com uma captação pífia e sem fotos. Talvez o Danilo estivesse acostumado com essas furadas (ele estava ali, salvo engano, havia quase dois anos), mas eu fiquei aborrecido. O que escrevi só rendeu dois míseros parágrafos. Frustrado, achei que ia perder a vaga. Mas, de algum modo, Banega resolveu me contratar. Fui conversar com a então diretora, Menga Junqueira, e pronto! Estava contratado. Porém, a princípio, trabalhei como repórter do caderno Arte Final, editado pelo Aldísio Filgueiras, junto com a Tricia Cabral. E ali começou uma relação de amor e ódio com o jornal Amazonas em Tempo, que dura até hoje! Mas uma coisa é certa: ali foi onde cresci profissionalmente e fiz amigos de longa data. E aprendi que vida de repórter é sujeita a essas pautas furadas, mais dia ou menos dia.

E agora estou me lembrando dos entrevistados malucos do jornal O Estado do Amazonas. Mas fica para a próxima!

Minha vida de foca: tiros no bairro São Jorge

Em uma conversa com um amigo virtual no Facebook, um estudante de Jornalismo, relembrei alguns momentos cômicos do meu início de carreira de redação, em 1995. Ele falava sobre a ansiedade, o receio de fazer a primeira matéria para veículo impresso (eu havia pedido sua ajuda com umas matérias para a revista para a qual escrevo) e a decepção de ter sido praticamente humilhado ao fazer um teste de trabalho e também a dificuldade de conseguir uma oportunidade para aprendizado no mercado.

Eu não tive essa dificuldade naquela época, felizmente. Tinha uma experiência iniciante na área de assessoria de imprensa, estava no quinto período da faculdade e uma amiga me convidou para fazer parte da equipe do Jornal do Norte, hoje extinto. Comecei como radioescuta e logo passei para repórter assim que pintou uma vaga no caderno Radar, de cultura e variedades. Era um foca perfeito, empolgado com o primeiro trabalho em redação, paralelo à faculdade (que acabei precisando trancar parcialmente, mas sem nenhum arrependimento hoje), querendo aprender muito.

Claro, apareceram os micos pelos quais os focas precisam passar. E foi assim que resgatei um episódio ocorrido por volta de 1996. Lembro que era um final de semana (creio que domingo) e eu estava no plantão no Jornal do Norte quando no início da noite houve uma ocorrência no bairro São Jorge, zona oeste de Manaus. Uns cidadãos estavam se embriagando e aconteceu uma discussão cujo ponto alto foi troca de tiros. Uma menina de uns 6 ou 7 anos acabou levando a pior: foi atingida por um tiro no rosto, que lhe entrou pela bochecha. Foi o estopim de uma revolta dos moradores locais, que começaram um quebra-quebra na casa dos encachaçados. Acho que a Mônica Santaella era a chefe de redação naquela época e me passou a bola. E lá fui eu cobrir a história. 

Era a primeira vez que eu ia cobrir algo mais significativo da área policial, mais que as rondas com prisão de bêbados desordeiros e ladrõezinhos. Chegamos ao local (não consigo lembrar quem era o fotógrafo que estava comigo, e nem o nome da rua) e a confusão estava armada. Estilhaços de vidro por todos os cantos, gente falando alto, mulheres histéricas, polícia tentando acalmar os ânimos... A garotinha ferida havia sido levada ao hospital. Fui atrás da história. Um morador me contou uma coisa, outro já aumentou mais a história, dizendo que a menina tinha morrido, e um me disse que os sujeitos eram traficantes.

Um senhor me chamou e apontou para um certo cidadão.

- Ele viu tudo, ele pode contar o que aconteceu!, disse, e depois chamou o fulano.

- Vem cá, conta pra imprensa!, pediu.

O cidadão só olhou para nós (estava visivelmente alterado) e disse:

- Quero que a imprensa vá se "fudê"!

Fiz ouvidos moucos. Só suspirei, irritado. "Caramba, será que ninguém pode me contar a história direito?". Foi então que fui cercado por uns dez moradores, falando ao mesmo tempo, querendo contar sua versão da história. Eu fiquei perdido no meio daquele povo, bloco e caneta na mão, tentando pegar as versões simultâneas de cada um, quase a ponto de explodir e mandar todo mundo calar a boca para botar ordem na baderna.

Foi então que soou o tiro. Um policial apareceu e atirou para o alto. A turma que me cercava praticamente evaporou. Fiquei sozinho, parado na rua do mesmo jeito que antes, o bloco cheio de anotações rabiscadas, nada assustado. Sério, nem susto peguei com o estampido. Muito pelo contrário: estava mais do que aliviado por ter me livrado daquela turba maluca. Qualquer coisa era melhor que várias pessoas falando ao mesmo tempo (e certamente um ou outro iriam inventar mais coisas para queimar mais ainda o filme dos acusados). Aí então, com a "paz" restabelecida, cheguei perto de um policial e obtive, finalmente, a tão esperada história dos bebuns que se estranharam e trocaram tiros, e uma bala perdida havia acertado a garotinha, já encaminhada e tratada no hospital. A polícia precisou intervir para que os vagabundos não fossem linchados pelos moradores revoltados.

Agradeci, chamei o fotógrafo e voltamos para a redação para escrever a matéria. Depois, eu só conseguia rir me lembrando da situação vexatória, com aquela turba enfurecida, cada um querendo dar sua versão da história, e eu me controlando para não perder a compostura com os histéricos. Coisas que parecem só acontecer na vida de um foca.

E esta é apenas a primeira história... Melhor que essa, só a dos cães do diabo. Mas fica para a próxima!

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Comentário: "Fome de viver" (The hunger, 1983), o legado cult de Tony Scott

Tony Scott (1944-2012)
O cinema perdeu Tony Scott, irmão de Ridley Scott, no dia 19 de agosto. Partiu outro cineasta que deixou sua marca na sétima arte. Dias antes de saber de sua morte, fui movido pela vontade de rever um de seus filmes que inclui na lista dos meus preferidos, daqueles de assistir várias e várias vezes, sem enjoar: "Fome de viver".

A adaptação do livro de Whitley Strieber foi bem concisa e ganhou nas mãos de Scott um tom iconográfico. A fotografia, o clima noir, a magnífica trilha sonora com composições clássicas e as atuações de Catherine Deneuve, David Bowie e Susan Sarandon como o triângulo amoroso central contribuiram para atribuir a esse filme um status de cult movie da década de 1980.

Miriam e Jonh à procura de vítimas
"Fome de viver" - livro e filme -, acima de tudo, foi uma reinvenção das histórias de vampiros, com fórmulas repetidas exaustivamente, praticamente sem renovar seus elementos, apesar de umas modificações pontuais, restritas a mudança de época (vide "Salem's Lot", livro de Stephen King, adaptado para a televisão em 1978 trazendo a história do Drácula de Bram Stoker para o interior do Maine na era contemporânea). Aqui, os vampiros não são criaturas noturnas, assustadoras, intolerantes ao sol ou vestidas em trajes sombrios. Pelo contrário: caminham entre nós, dia e noite, são elegantes, de gosto musical refinado e ricos, bastante ricos. 

Abertura do filme, com Peter Murphy (Bauhaus)
Assim é a vampira Mirian Blaylock, a personagem de Catherine Deneuve. Ao seu lado, como seu parceiro e amante na eternidade, ela tem John Blaylock (Bowie), a quem havia transformado em vampiro séculos atrás. Da mansão em que vivem, ambos saem juntos em busca de vítimas para saciar sua fome de sangue, como é mostrado na abertura antológica em que o casal as encontra em uma boate. Troca de olhares e gestos revelam a armadilha, enquanto Peter Murphy, do Bauhaus, canta "Bela Lugosi is dead", música mais que adequada ao clima. No lugar dos caninos e olhos amarelos, um minúsculo e belo punhal egípcio é usado para cortar a jugular de suas vítimas.
A transformação de John
John, no entanto, começa a ter problemas para dormir - é o primeiro sinal de que a transformação feita por Mirian está entrando em processo de reversão. O amante da bela vampira começa a envelhecer rapidamente, sendo tomado por uma fome violenta que o leva à loucura aos poucos. Na tentativa de ajudá-lo, Mirian descobre o trabalho da doutora Sara Roberts (Sarandon), autora de estudos sobre distúrbios do sono, uma provável fonte de recupeação para John. No entanto, Mirian se sente atraida por Sara e decide torná-la sua companheira, no lugar do amante cada vez mais envelhecido.

Miriam e Sarah em momento trágico do filme
A cena de sedução entre Mirian e Sara, ao som de um dueto da ópera Lakmé que trata do amor entre duas mulheres, é uma das mais belas que já vi, sutil e bem fotografada. É a transição do inferno que começa na vida de Sara e termina de forma abrupta para os três personagens.

Como sempre, o livro é melhor. A relação entre John, Mirian e Sara foi mantida, assim como personagens como Tom Haver, namorado de Sara, e Alice Cavender, garota que pratica música instrumental com os Blaylock e acaba se tornando vítima da fome descontrolada de John. Mas a obra de Strieber é repleta de flashbacks que contam a história de perseguições ao longo dos séculos que a raça de Mirian sofreu a ponto de quase serem exterminados, bem como a quantidade imensa de amantes que ela teve ao longo de sua vida. O final também foi modificado no filme, mas nada que comprometa o resultado. Tony Scott conseguiu deixar um verdadeiro marco de admirável técnica. Essa é a verdadeira vida eterna.

E atenção para o horário humorístico gratuito!

Desde que me entendo por gente, abomino o horário eleitoral gratuito. Todo ano eleitoral é a mesma coisa: acusações aqui, cutucadas com vara curta ali, baixarias e a famosa farsa da oposição ferrenha (evidenciada após diversas tramoias políticas que fazem os adversários trocarem gentilezas e negando os ataques e contra-ataques). 

Ontem, porém, enquanto me distraia no Facebook, deixei a televisão ligada justamente nesse intervalo de tempo, e um nome me chamou a atenção: Madona dos Rodoviários, candidata a uma vaga na Câmara Municipal de Manaus por uma das coligações que disputam o poder na capital amazonense. Uma concorrente a vereadora que nem de longe lembra a homônima da Blonde Ambition. Foi então que larguei o netbook e passei a observar os nomes e as atitudes dos candidatos dali em diante, onde houve espaço até mesmo para o Highlander, um dos rivais de Madona (a nossa, não a megastar).

Tenho que confessar que passei a ver o horário político como algo tão surreal que se torna humor escrachado. Enquanto alguns candidatos ao cargo de prefeito de Manaus apelam para lágrimas,  "belas e exemplares" histórias de vida e pegam emprestada a aura de algum anjo da guarda incauto que esteja nas proximidades, outros parecem ter copiado seu cenário daqueles lugares em que os asseclas da Al-Qaeda proferiam ameaças e imprompérios contra o Grande Satã e a civilização judaico-cristã do Ocidente, como bem observaram vários amigos nas redes sociais. A atração principal, fora os candidatos "nanicos" à prefeitura, por assim dizer, acabam sendo os que buscam uma "boquinha" nas dependências da Câmara Municipal.

Temos Madona e Highlander. Os nomes bizarros vão aparecendo aqui e acolá. Mas as atitudes são mais divertidas. Tem candidato que parece estar lendo suas declarações em uma cartolina erguida pelo câmera. Outros estão praticamente congelados e só movem os lábios, em meio a um sorriso amarelo. Alguns são tão espontâneos que não se acanham em massacrar a nossa tão sofrida gramática e ainda abraçam o candidato a prefeito, que parece mais uma estátua de cera (ou "estauta", como alguns dizem). Existem também os que aparentam ter saído de um ônibus lotado, de tão amarrotadas que estão suas roupas, sem nenhum cuidado com a produção visual (ou então pecam pelo excesso, transformando-se em bolos confeitados ambulantes). Vi um cidadão que, se usasse uma peruca preta toda encrespada, poderia muito bem ser o clone da Adelaide, aquela mendiga do programa Zorra Total que sempre pede "cinquenta centarru, vintecinco centarru ô dez centaaaaaaaaarru", mas tem um "tábreti". 

Os tipos estranhos e curiosos continuam em desfile. Tanta bizarrice me trouxe à mente a campanha para a presidência da República na década de 1990, quando entre os embates de Collor e Lula (ainda um trabalhador que todos desejavam ver no poder) apareceram figuras como o Marrozinho, que não conseguia falar e mostrava uma mordaça, a primeira mulher candidata que fazia a propaganda à beira do fogão e o alegórico e já falecido Enéas (este pelo menos conseguiu conquistar seu objetivo e foi um exemplo de persistência). Sem contar o Ronaldo Caiado, bancando o salvador da Pátria montado em um cavalo branco, uma coisa extremamente apelativa e de péssimo gosto.

Depois de muito tempo sem prestar atenção no horário eleitoral gratuito na televisão, descobri uma nova forma de rir e esquecer um pouco as amarguras da vida. Sem querer debochar dos coitados que só estão ali fazendo sabe Deus o quê (se votarem em si já será uma conquista), mas em muitos casos está na cara, literalmente, o despreparo do cidadão. É óbvio que para muitos almejar uma vaga no mundo da política é conseguir uma boquinha para ganhar muito dinheiro (claro, com tantas mordomias é normal haver essa ambição). Mas aqui e ali aparecem pessoas sérias (uns poucos eu conheço pessoalmente e um deles já terá meu voto), e aos demais que involuntariamente acabam se tornando engraçados, só posso desejar boa sorte, pois se Tiririca chegou lá, a zebra pode acontecer de novo. Mas para isso, falta o carisma e uma música idiota que conquiste o público. Pelo andar da carruagem da pobreza musical em nosso país, talvez não seja tão difícil.


VIAGEM: Cabaceiras, PB (06/04/2024)

Pela terceira vez viajei à Paraíba nas férias - e a primeira vez com meu marido Érico -, e essa foi a oportunidade de realizar um sonho, alé...