Você sorri, se diverte, conversa normalmente com seus amigos, trabalha tranquilamente. Mas dentro de sua alma existe uma espécie de nuvem pesada, sombria, como se houvesse um ser estranho em permanente vigia e, ao primeiro descuido, ataca sua mente. Mais ou menos assim é a depressão.
Não é fácil perceber a não ser quando a crise chega, sendo o disparo feito por alguma situação negativa, seja um problema no trabalho, uma crise no relacionamento, um problema financeiro. Obviamente que diante desses problemas qualquer um fica aborrecido, mas na pessoa que sofre de depressão isso tem uma força muito maior. É uma mistura violenta de impotência, ansiedade, angústia, desespero, falta de esperança, desconfiança, inferioridade, solidão e medo. Um sofrimento que pode não existir, mas na cabeça do depressivo o mundo é outro.
Há anos luto contra a depressão, e até então tenho me saído relativamente vitorioso. Venho de uma família numerosa, o mais novo de nove irmãos, com pais migrantes do Ceará. Crescemos em uma casa de madeira, meu pai trabalhando para nos sustentar com dignidade, minha mãe cuidando dos filhos, preocupados com nossos estudos. Deu tudo certo com essa batalha. Hoje todos tem vidas com o mínimo de tranquilidade e paz possível para uma família.
Nesse meu mundo, não sei quando o disparo veio. Tive mais privilégios que meus irmãos, pois meu pai conseguiu para mim uma bolsa de estudos em sua empresa logo que mudamos da casa de madeira na zona centro-sul de Manaus para a casa de alvenaria em um conjunto residencial na zona centro-oeste da cidade, no final de 1980. Em 1982, ingressei em um colégio particular graças a essa bolsa. Levei bomba e repeti a quarta série, mas continuei na escola em 1983. Daí em diante foi aprovação direta (ou na recuperação, em duas ocasiões) até minha formatura no ensino médio (na época chamado de segundo grau) em 1990. Jà então eu trabalhava e com ajuda de um dos meus irmãos continuei na escola nos últimos três anos, pois a bolsa só duraria até o final do primeiro grau (ensino fundamental).
Com essa sorte, como poderia me tornar uma pessoa depressiva? Quando percebi que a tristeza se tornou incomum, fora do que se pode chamar de normal? Tive mais sorte na educação (pelo menos até o segundo grau, quando a qualidade do ensino na escola particular caiu muito), então deveria estar feliz por ter aproveitado melhor a instrução que tive. Não foi bem isso que aconteceu, e anos depois começaram as crises estranhas. Eu me afastava dos meus colegas, desenvolvi uma paranoia e até mesmo um sentimento de inferioridade, alimentado principalmente pelo bullying sofrido por ser negro (em grande intensidade) e de fora dos círculos dos riquinhos (em grau muito menor, pois felizmente conheci colegas dignos, independente de sua condição econômica).
Aos 18 anos passei no meu primeiro concurso público para uma instituição federal, após pouco mais de um ano desempregado (o primeiro emprego era temporário até o limite de 17 anos e 10 meses, mas a era Collor provocou uma reação em cadeia que levou à minha demissão antecipada, assim como a de outros jovens na minha situação). Também passei no primeiro vestibular, para Jornalismo. Foram anos sensacionais de aprendizado tanto em relação à profissão que escolhi quanto no convívio social, deixando para trás os personagens da escola particular (muitos deles limitados) e ingressando em um universo muito mais diverso de ideias e visões e comportamentos. Ali virei gente, no sentido mais amplo da expressão.
Com o passar dos anos evolui profissionalmente, mudei de emprego mais de uma vez, fiz grandes amizades, conquistei o que sempre quis, mesmo em meio a dificuldades eventuais, principalmente financeiras, mas sempre achando solução para tudo. Ainda hoje é assim.
Todo esse rodeio sobre minha vida até agora, quando estou prestes a completar 46 anos, é só para lançar a questão: com uma vida de certa forma melhor que de outras pessoas, como posso ser depressivo?
Começou na escola, com o bullying? Não creio, mas tenho certeza de que houve influência.
(Aqui faço um parêntese para criticar os que ficam debochando dos efeitos posteriores do bullying: eles existem e podem ser terríveis. Se alguém passou por isso e superou, parabéns. Mas nem todas as cabeças funcionam do mesmo jeito)
Sofri assédio moral no trabalho? Sim, mas sempre soube lidar com isso. Exceto uma ocasião, que serviu como gatilho para uma severa crise depressiva, da qual tratarei mais adiante.
Então você pode ver como fica difícil encontrar um motivo para a depressão. É mais fácil saber o que pode contribuir para afetar negativamente a mente de uma pessoa, pois o depressivo, como expus no início deste texto, possui um tipo de nuvem obscura na alma, escondida, esperando a oportunidade para se revelar e encobrir, atacar. Nós sentimos essa nuvem e a tentamos ignorar. Eu tenho conseguido, mas infelizmente nem todos conseguem e sucumbem.
Há fatos de minha infância - sobre os quais não estou preparado para falar, mas é de conhecimento de amigos muito íntimos - que gostaria de apagar da mente, mas é impossível. Essa maldita nuvem negra fica eventualmente empurrando isso para minha consciência como forma de vergonha. Seria esse um elemento que fez gerar essa negatividade que insiste em me atormentar?
Dúvidas e mais dúvidas. Questões e mais questões.
Há pouco mais de 11 anos, cheguei no fundo do poço graças a uma soma de fatos cruéis. Uma mudança na empresa jornalística em que eu trabalhava abalou a mim e todos os meus colegas. A companhia iria mudar de mãos, e nesse rastro de mudança haveria cortes (não convém entrar em detalhes, pois muito do que aconteceu ali não se pode provar até hoje, mesmo sabendo que todas as histórias são verdadeiras). Havia tensão constante, descaso com os profissionais, os quais passaram a serem "fritados" até o momento de serem desligados. Foi o pior caso de assédio moral que sofremos.
Em junho daquele ano (2007) perdi uma grande amiga da maneira mais absurda: supostamente um suicídio por envenenamento, mas os fatos posteriores apontaram que poderia se tratar de um homicídio (o provável causador está morto, portanto a verdadeira história foi para o túmulo). Foi um grande choque e um terrível trauma. Aí acontecem os problemas no trabalho, o consumo de bebidas alcoólicas aumenta deliberadamente. A solução foi mostrada pela nuvem obscura: várias cartelas de comprimidos e a maior mistura de bebidas que se pode imaginar. Ainda tive forças para me despedir por mensagens de vários de meus bons amigos. Creio que graças a isso fui salvo. Foi dado um alerta. Vômitos, ida ao hospital, um sermão e uma conversa com uma pessoa maravilhosa - que infelizmente não está mais entre nós há quase três anos - conseguiram me resgatar.
Sim, cheguei ao fundo do poço. Eu me recuperei e tomei a decisão de me livrar de pelo menos um desses péssimos combustíveis da depressão: larguei o trabalho onde estava sendo tratado como lixo, passei a me dedicar apenas ao local onde meses antes (justamente quase uma semana após a morte de minha amiga) começara a trabalhar (segundo concurso público em que fui aprovado). Afastar essa energia ruim ajudou muito, e as coisas voltaram aos eixos.
Mas a nuvem sombria nunca me deixou. Tentou ensaiar uma volta em 2010 quando meu pai teve um AVC e ficou em cima de uma cama de hospital até morrer seis meses depois, aos 85 anos. Tive ajuda de amigos e superei. Porém consegui outras formas de lutar contra ela: limitei meu círculo de amizades, mensurei minha diversão (antes "enfiava o pé na jaca", agora sou mais "light"), achei outras maneiras de ocupar a mente (séries, retorno aos livros, cinema e, principalmente, viagens). Procuro evitar pensar demais no futuro e busco viver o presente. Tento encarar as dificuldades com o mínimo de calma possível.
A nuvem sombria tem perdido a batalha, mas não desiste nunca. Está aqui, eu sinto. Tem horas que eu pareço prestes a sucumbir quando algo dispara. De repente minha paixão pelo cinema arrefece. Não consigo me concentrar nas leituras. Meu desejo por viagens às vezes se transforma num fiozinho frágil. As tensões dos últimos meses no país (que refletem no meu trabalho de todos os modos) causaram isso. Os horrores que o mundo todo tem presenciado também. Mas não posso fechar os olhos, é uma realidade a ser enfrentada. Sinto muito, dona nuvem sombria, mas não ganhas essa me tornando um alienado.
É difícil, gente. Não tive ainda confiança suficiente para procurar a ajuda profissional de que todos falam. Nem sei se a conseguirei um dia.
Mas sigo tentando.
Muita luz a todos!
Coisas do cotidiano de Manaus e do Amazonas, pequenas matérias, opiniões, comentários sobre cinema e televisão, livros, músicas, desabafos e histórias de vida de um jornalista e mais algumas coisitas de pouca ou nenhuma relevância!
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