quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

FILMES: "Corra!" (Get out, 2017)




Se você é negro, sente que vive em uma sociedade onde o racismo é disfarçado e por isso é "escaldado", vai entender a reação de desconfiança do jovem fotógrafo Chris Washington (Daniel Kaluuya) durante a festa tradicional que a família de sua namorada branca Rose Armitage (Allison Williams) promove anualmente em sua propriedade: só há pessoas brancas que o tratam com cortesia e gentileza extremas, e fora ele, os únicos negros são empregados dos Armitage - Georgina (Betty Gabriel), a copeira, e Walter (Marcus Henderson), o jardineiro. Rose o leva até o lugar para apresentá-lo ao pai neurocirurgião, Dean (Bradley Withford), e à mãe, Missy (Catherine Keener), a qual desenvolveu interessantes técnicas de hipnose que em um primeiro momento conseguem fazer Chris largar o hábito de fumar, instantaneamente. Além deles, há o irmão de Rose, Jeremy (Caleb Landry Jones), um tipo meio encrenqueiro. Está armada a trama de "Corra!", de Jordan  Peele, uma alegoria bem interessante sobre racismo velado e a hipocrisia das relações sociais entre brancos e negros.

No filme, os Armitage são uma família que diz repudiar o racismo, mas sua tentativa constante de afirmar isso, seja por palavras ("eu voltaria no Obama", diz Dean) ou atitudes, deixa Chris cada vez mais desconfiado. É para o amigo gente boa Rod (Lil Rel Howery), um divertido agente de segurança, que ele vai contar por celular suas suspeitas de que há algo muito errado naquele lugar, sobretudo pelas atitudes de Georgina e Walter, estranhamente conformados, como se fossem robôs ou houvessem passado por uma lavagem cerebral. As desconfianças vão se agravar após a chegada à festa de Sebastian (Keith Stanfield), outro negro, acompanhado de sua mulher, uma branca muito mais velha. A reação aparentemente agressiva de Sebastian ao flash do celular de Chris - foto que ele vai mandar para Rod posteriormente - faz disparar o alarme na mente do fotógrafo. Só que aí ele vai perceber que caiu em uma armadilha.

(SPOILERS A SEGUIR)
.
.
.
.
.
.
.

O próprio espectador vai começar a ficar nervoso justamente com a chegada de Sebastian, pois vai reconhecer nele o jovem que, no prólogo do filme, é sequestrado por um homem encapuzado quando caminhava rumo a um suposto encontro. Ele, na verdade, é Andrew Logan, um conhecido de Rod e Chris, dado como desaparecido há meses, como o agente vai descobrir em sua investigação quando Chris não retorna do final de semana com os Armitage. A essa altura, o fotógrafo já descobriu da pior maneira possível quem é a família de sua namorada: perpetradores de uma técnica desenvolvida pelo patriarca, já falecido, que lhes permitia, por meio da hipnose, transformar pessoas negras em seres submissos, inclusive de forma sexual. Pior que isso: com uso de cirurgia, conseguem fazer uma espécie de transplante de consciência, tornando a vítima um tipo de hospedeiro. E, pior ainda: Chris será o próximo, leiloado em um silencioso evento entre todos os brancos na festa. Os momentos finais do filme, quando Chris consegue driblar os Armitage e iniciar sua represália para poder fugir, explicam as atitudes dos convidados com o fotógrafo.


"Corra!" também reserva uma crítica à suposta paranoia envolvendo o racismo, evidente na sequência em que Rod, extremamente preocupado com o sumiço do amigo e quase próximo da verdade após descobrir o desaparecimento de Andrew, procura a polícia para contar suas suspeitas e é recebido com incredulidade e risadas dos policiais - dois dos quais são negros. Ou seja, o racismo muitas vezes é tomado como exagero - uma forma de minimizar um problema não só grave como repulsivo: até declarações públicas racistas (seja como piada ou como exposição de estereótipos) tendem a ser relevadas por conta de "exageros" de quem se sente ofendido.

Interessante é saber que o final do filme, quando Chris mata todos os algozes (o que me vez vibrar a cada contra ataque) e descobre a verdade sobre Georgina e Walter (para os quais foram transplantadas as lembranças dos pais de Dean), havia sido modificado por conta da má reação da plateia em exibições prévias. No original, depois de estrangular Rose, a última que ainda o perseguia, Chris é preso. Na cadeia, condenado, revela a Rod que está tranquilo, pois conseguira parar a loucura dos Armitage. Na versão dos cinemas, é Rod quem aparece e resgata Chris. Ambos vão embora e deixam Rose, que fora baleada por Walter num instante de lucidez (que o leva a se matar depois), sangrar até a morte na estrada (eu, particularmente, passaria com o carro por cima da vadia, tamanha a revolta que aquela trama imoral me provocou).

Longe de ser apenas um filme de terror psicológico, "Corra!" é uma reflexão sobre as considerações feitas sobre o racismo hoje e a condenação do "politicamente correto" quando o assunto é ofensa racial. É para isso que serve a situação absurda mostrada por Peele na trama: nada é tão absurdo e inacreditável que não possa se tornar, em algum momento, uma verdade pavorosa.

VIAGEM: Cabaceiras, PB (06/04/2024)

Pela terceira vez viajei à Paraíba nas férias - e a primeira vez com meu marido Érico -, e essa foi a oportunidade de realizar um sonho, alé...