Nas décadas de 1970 e 1980, o cinema nacional teve momentos de altos e baixos. Era tempo das poucas condições técnicas que acabaram muitas vezes nivelando por baixo muitas produções cinematográficas, muitas das quais conseguiam destaque pela criatividade e pela ousadia. Eram tempos de ditadura militar, censura e posteriormente abertura política e o alvorecer democrático. Nesse contexto o filme "Amor, estranho amor", de Walter Hugo Khouri, passou como todas as obras do diretor: ousado, sensual, introspectivo e com elenco repleto de belíssimas atrizes.
Passaram-se 29 anos desde a exibição do filme e "Amor, estranho amor" acabou relegado injustamente ao posto de maldito e pornográfico, mas pelas razões erradas e motivos distorcidos por uma pendenga entre uma coadjuvante, a então iniciante atriz Xuxa Meneghel, antes de se tornar a celebridade dos "baixinhos" daquela década, e a própria indústria do entretenimento, nos primeiros passos do sensacionalismo que acabou vitimando o cinema de Walter Hugo Khouri.
A história de "Amor, estranho amor" se desenrola ao redor do menino Hugo (Marcelo Ribeiro, na época com 13 anos), ambientada na cidade de São Paulo da década de 1930/40, a partir de suas lembranças, já adulto. Ele é deixado pela avó em frente a uma mansão na capital paulista, onde na verdade funciona um bordel de luxo de Laura (Íriz Bruzzi) no qual a mãe do menino, Ana (Vera Fischer) trabalha. É ali, em meio às belas meretrizes, que ele vai começar a descobrir aos poucos sua sexualidade, seja pelo assédio das mulheres ou pelas cenas protagonizadas por elas e seus clientes ricos.
Não é pelo elenco de primeira classe da época, que contava ainda com Tarcísio Meira e Mauro Mendonça, que o filme hoje ainda tem destaque, mas sim por conta da aludida pornografia, e de uma única e rápida cena, em que a personagem de Xuxa, Tamara, uma das garotas do bordel, que será rifada entre os clientes, assedia e seduz o garoto Hugo, mas é interrompida por Ana, que a agride para proteger o filho. Demais talvez para a época, pois um ator mirim protagonizou cenas consideradas picantes, com alguma nudez. Hoje, em termos de sensualidade, há coisas mais fortes mesmo na popularizada televisão, como recentemente se viu no remake da telenovela "O astro".
Cartas na mesa. A fama posterior de Xuxa como apresentadora de programas infantis foi a mina de ouro dos executivos da indústria de entretenimento que tentavam a todo custo lucrar. O filme, cujo protagonista era Marcelo Ribeiro ao lado de um elenco de peso, passou a ser o "filme proibido da Xuxa", o "filme pornográfico da Xuxa". O próprio Ribeiro, em entrevista à Ilustrada (Folha de S. Paulo) em 2007, contou como sentiu na pele essa barbaridade sensacionalista feita para aproveitar a fama de Xuxa e como isso acabou sepultando precocemente sua carreira de ator. Contou, também, como a então atriz principiante teve sua imagem colocada entre os protagonistas como chamariz para o "consumo" do filme (clique aqui para ler a entrevista de Marcelo Ribeiro na Folha On Line).
Ainda há hoje quem se refira ao filme como "o filme de sacanagem" da Xuxa, dando um sentido injusto à película de Khouri. Só quem pode se referir a essa obra desse modo são pessoas desprovidas de um mínimo de conhecimento sobre a arte cinematográfica. Tarcisio Meira, Vera Fischer, Iris Bruzzi, Matilde Mastrangi, Walter Forster e Mauro Mendonça também participaram de "Amor, estranho amor" e chegaram, alguns deles, a protagonizar cenas bastante sensuais, mas nem por isso se diz que foram um dia atores pornôs (inclusive, Fischer e Mastrangi também fizeram cenas audaciosas com o garoto, mas não foram condenadas). Em nome do sensacionalismo barato e ridículo com vistas somente aos lucros, seu trabalho foi jogado na vala comum do lixo e ganhou uma pecha injusta de maldito. A depravação, de fato, estava - e ainda está - na cabeça de quem ainda caça o filme como uma raridade pornográfica.
Há que se esclarecer que existe uma linha que separa o erotismo e a pornografia. "Amor, estranho amor" é um drama brasileiro com erotismo. Pornografia à brasileira era o que se produzia na finada Boca do Lixo com atores e atrizes hoje esquecidos (ou igualmente finados). Erotismo envolve sentimentos, sensualidade discreta, sexo simulado como todo grande ator sabe fazer. Pornografia é escracho, sexo explícito, o famoso "fast fucking" em que os minutos de "ação" valem dinheiro. Algumas vezes o limite entre ambos é ultrapassado, mas isso faz parte de uma outra mentalidade que eventualmente desponta no meio cinematográfico de hoje (Lars von Trier, por exemplo, que usou uma cena de sexo explícito em "Anticristo"). Mas não é aqui o caso.
Marcelo Ribeiro era um ator adolescente. Como naquela época foi possível que ele fizesse cenas sensuais, é outra história. O problema foi criado quando se resolveu confundir convenientemente a personagem Tamara à atriz e apresentadora em ascensão Xuxa Meneghel (a partir de então, não foi a jovem prostituta quem molestou Hugo, foi Xuxa que molestou Marcelo Ribeiro, na visão distorcida dos sensacionalistas). Qual a melhor forma de se vender um produto que não colocar a "rainha dos baixinhos", ex-namorada do jogador Pelé e modelo, em "posições comprometedoras"? Essa foi a mentalidade doentia de quem iniciou essa má (e, repito mais uma vez, injusta) fama do filme. Naquela época, a única referência a Big Brother era o livro (e o filme) "1984", de George Orwell. Mas desde já se delineava uma indústria repulsiva que hoje é praticamente idolatrada por muitos. Quem juntou Tamara e Xuxa foi o pioneiro da baixaria hoje tão comum na cultura de massa.
Vera Fischer |
Em momento algum quero defender Xuxa. Não é essa minha intenção, nunca foi. Creio que ela teve também sua parcela de culpa nesse episódio ao tentar combater da pior forma possível esse sensacionalismo criado em torno de sua participação no filme: retirando todas as cópias de circulação no mercado de video. Se fosse mais inteligente, em vez de mostrar que queria "renegar o passado", tentando esconder algo que passou a achar vergonhoso, deveria partir para a briga de frente com essa situação toda. Suas atitudes somente aumentaram o interesse distorcido pelo "filme maldito". Além do mais, acabou dando mais corda para os que veem seu sucesso como resultado de pactos demoníacos - apenas para citar, pois não pretendo nem agora nem nunca entrar nesse mérito.
Quando ela começou a fazer sucesso entre as crianças, eu já era adolescente. Assisti "Amor, estranho amor" com olhos de cinéfilo, não de pervertido sexual. E assim me mantenho até hoje. Se Xuxa fez filmes realmente pornográficos antes ou depois de "Amor, estranho amor", isso de fato não me faz diferença. Todos os personagens envolvidos nessa novela eterna deveriam ter mais respeito ao cinema nacional, essa é a verdade!
Em tempo: recomendo a leitura de um texto de Walter Hugo Khouri publicado em 1982 na Penthouse brasileira, a respeito do filme (clique aqui).