Em uma das cenas de "Amarga sinfonia de Auschwitz", Fania Fenelon (Vanessa Redgrave) grita para as outras prisioneiras que está cansada de rótulos e é apenas um ser humano. É um dos diversos momentos de destaque desse telefilme de sucesso de 1980, baseado nas memórias de Fania Fenelon (1908-1983), judia francesa e cantora deportada para Auschwitz no início de 1944, após ser denunciada também por ser membro da Resistência durante a ocupação nazista.
Vanessa Redgrave interpreta a cantora e membro da Resistência Fania Fenelon |
Ao entrar no universo de vida e morte de Auschwitz, o mais famoso campo de extermínio da Segunda Guerra Mundial, no sul da Polônia ocupada pelos nazistas, Fania passa a fazer parte da orquestra de mulheres (judias ou não) do local, que faz apresentações para seus carrascos e para os prisioneiros judeus recém chegados ao lugar e selecionados para a morte nas câmaras de gás. Os dilemas em nome da sobrevivência são muitos. Alma Rosé (Jane Alexander), a regente da orquestra, é uma mulher judia rigorosa com as companheiras a ponto de parecer em alguns momentos estar alheia à carnificina diária promovida pelos nazistas, e com quem eventualmente Fania tem diálogos duros sobre suas ações. Transportada juntamente com Fania para o campo, Marianne (Melanie Mayron) também entra para o grupo, mas recorre à prostituição para obter comida. Por se considerar meio judia pelo fato de sua mãe ser católica, Marianne dá-se o direito de usar meia estrela de Davi em sua roupa, como se fosse uma garantia ainda que insuficiente de sobrevivência, pelo que é criticada pelas demais prisioneiras.
Jane Alexander como Alma Rosé |
O filme revela uma atmosfera meio que surreal do campo de Auschwitz, célebre pelas altas cifras de mortes de judeus, ciganos, opositores do regime nazista, homossexuais e outras minorias perseguidas. A líder do campo Maria Mandel (Shirley Knight, que apareceu recentemente como Phyllis, a sogra de Bree Van De Kamp, personagem de Marcia Cross em "Desperate housewives") é uma carrasca brutal que espanca os prisioneiros e toma para si o filho pequeno de uma judia condenada à câmara de gás. No entanto, é uma mulher que pessoalmente procura um par de sapatos que sirva para a recém chegada Fania, colocando-os em seus pés, e não esconde sua dor ao ser obrigada a entregar à morte o menino que tirara da mãe prisioneira. O dr. Mengele (Max Wright, conhecido pelo papel de William Tanner na telessérie da década de 1980, "Alf, o E.Teimoso") revela sentimentos de compaixão e amor, a despeito de o personagem real historicamente ser conhecido pelas experiências bárbaras realizadas em Auschwitz e também responsável pelas seleções para o extermínio. Sobressaindo-se a esse lado humanizado da figura do carrasco, seu caráter evidenciado pela História volta a surgir, ao determinar que a orquestra feminina ensaie uma apresentação musical para um grupo de prisioneiros formado por doentes mentais sob o pretexto de estudar as suas reações à música. Logo depois, todas as pessoas seriam executadas nas câmaras de gás.
Shirley Knight como Maria Mandel |
É nessa luta pela sobrevivência que conflitos morais são colocados em evidência pelas prisioneiras em sua luta diária para terem suas vidas poupadas. Há momentos de grande esperança: em uma das cenas, um dos prisioneiros judeus aproxima-se de Fania e lhe mostra a palma da mão, onde está escrito "Os aliados desembarcaram na Normandia"; em outra, as prisioneiras comemoram a fuga de uma judia influente, Mala, interpretada por Maud Adams, de "007 contra Octopussy", crentes de que ela e seu amante Edek (Lee J. Nelson) poderiam revelar ao mundo as barbáries de Auschwitz. No entanto, tais esperanças logo são destruídas: aviões que sobrevoam a região são abatidos pela artilharia antiaérea nazista, e Mala e Edek são recapturados e enforcados em frente ao barracão das prisioneiras. O pesadelo se arrasta até a morte de Alma Rosé, envenenada por uma guarda nazista que preferiu matá-la a deixá-la sair de Auschwitz para o front onde cantaria para soldados alemães (pela afronta aos superiores, a guarda foi fuzilada). Única garantia de vida para todas as mulheres da orquestra, sua perda significava incerteza para o grupo, que passa a ter sua liderança disputada entre Fania e a polonesa Olga (Christine Baranski, que apareceu como mãe do nerd Sheldon em "The Big Bang Theory"). Parte das mulheres sobreviveu até o dia da libertação.
O elenco da orquestra de Auschwitz |
Na história real de Fania Fenelon, Auschwitz foi evacuado com a aproximação dos aliados e as prisioneiras foram levadas a Bergen Belsen, onde a libertação chegaria em abril de 1945. Das cerca de 80 componentes do grupo, 47 sobreviveram ao Holocausto. Maria Mendel foi presa, condenada por crimes contra a humanidade e executada em Cracóvia, Polônia, em 1948. Fania escreveu suas memórias e morreu de câncer em Paris, em 1983. Sua história não é somente um retrato da brutalidade das perseguições na Europa nazista representada por Auschwitz e seu duro leque de dilemas, mas também de esperança e luta.
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