segunda-feira, 25 de junho de 2012

Comentário: "A espiã" (Zwartboek, 2006)

Carice Von Houten como Rachel Stein


Carice como Ellis de Vries
Em um kibutz do recém criado Estado de Israel, em 1956, Ronnie (Halina Reijin), em viagem turística com o marido canadense, reencontra Rachel Stein (Carice Von Houten), a quem conhecera nos tempos da guerra na Europa como a cantora Ellis de Vries, e não esconde sua surpresa ao vê-la ali como professora de crianças e - mais surpresa ainda - assumindo sua origem judia. A partir da pergunta de Ronnie - "Como você veio parar aqui?" -, é contada em flashback a história de Rachel e da gênese de Ellis de Vries na Holanda ocupada pelos nazistas nos fins de 1944, nesse filme dirigido por Paul Verhoeven.


Com o desfecho da Segunda Guerra próximo e a derrota alemã tida como inevitável, os judeus holandeses ainda eram perseguidos. Umas poucas famílias ricas conseguem comprar sua fuga para territórios neutros onde poderão aguardar em segurança o fim do conflito - entre elas, Rachel, seu irmão caçula e os pais. Até então, ela vivia escondida no sótão de uma família cristã holandesa, tendo que tolerar comentários como "os judeus deveriam ter aceitado Cristo e não estariam passando por isso" em troca de segurança e um prato de comida. Porém, a casa é destruída em um bombardeio, e Rachel é levada por um amigo, Maarten (Xander Straat), para sua própria residência. Ali, são descobertos por Van Gein (Peter Blok), membro da Resistência, que aconselha a jovem cantora a fugir com um grupo de perseguidos em uma travessia de rio segura até a Bélgica. É no local de encontro que Rachel reencontra a família, levando Maarten junto para evitar retaliação contra o rapaz por haver escondido uma judia.

A viagem, no entanto, termina mal. O barco é interceptado por soldados alemães no meio do rio e os passageiros, entre eles Maarten e a família Stein, são fuzilados. Rachel é ferida de raspão e pula no rio, desaparecendo da vista dos carrascos e chegando à margem do rio, de onde, escondida, observa os nazistas surrupiando roupas, dinheiros e outros bens dos mortos. 

Ludwig Muntzen (Sebastian Koch)
É nessa fase que surge Ellis de Vries, transformação total de Rachel, que agora entra na Resistência a despeito do disfarçado antissemitismo de alguns integrantes do grupo, evidenciado por comentários ácidos. Essa metamorfose é radical: Rachel/Ellis torna seus cabelos louros, cor que estende aos pêlos pubianos, no afã de convencer seus inimigos da sua "pureza racial" e assim lutar não somente pela liberdade, mas para vingar o assassinato de sua família. Nesse rumo ela vai se infiltrar no lado inimigo ao aproximar-se do oficial Ludwig Muntzen (Sebastian Koch) e travar conhecimento com outro oficial, Gunther Franken (Waldemar Kobus), o qual ela reconhecerá como o líder do grupo que promoveu a matança de sua família, de Maarten e dos demais fugitivos. Em meio a isso, inclusive a uma súbita paixão por Muntzen, Ellis tem que lidar com Hans Akkermans (Thom Hoffman), membro da Resistência que lhe dá apoio e que eventualmente se insinua para ela.

Mostrados os personagens e o fio central da história, basta dizer que nem tudo é o que parece. Muitas surpresas acontecem na trama e alguns papéis se invertem. Ellis/Rachel participa de ações arriscadas e acaba se tornando, em certo momento, vítima da paixão genuína que sente por Muntzen e alvo da fúria da Resistência após uma fracassada tentativa de resgate de reféns.

O aspecto interessante é que "A espiã" não tem aqueles estereótipos de mocinhos e bandidos. Pelo contrário, iguala os dois lados quando o assunto é crueldade. A vingança dos holandeses mais exaltados contra os colaboracionistas dos nazistas não perde em selvageria para os atos dos algozes alemães: os traidores da pátria são trancafiados em gaiolas onde defecam e urinam em baldes e ainda são obrigados a mostrar seus genitais para escárnio de uma plateia de bêbados. Além disso, mulheres que se tornaram amantes de oficiais nazistas têm seus cabelos raspados e são espancadas (cena similar foi protagonizada por Monica Bellucci em "Malena", de 2000, filme brilhante de Giuseppe Tornatore que também merece um comentário). 

Finda a guerra, de volta à época do início do filme, Rachel, agora casada e mãe, longe dos ecos do Holocausto, parece não encontrar a resposta para uma pergunta que faz em um momento de desespero em meio ao terror nazista: "será que isso nunca acaba?". A cena final, no entanto, propõe para o espectador essa resposta. Basta assistir e compreender.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Manaus: propaganda e realidade

Ontem, em um dos intervalos comerciais noturnos da televisão, me deparo com uma propaganda da Prefeitura Municipal de Manaus enaltecendo os "avanços" da atual administração de minha cidade (onde nasci, onde cresci, estudei, tive oportunidades e onde minhas raízes estão fincadas, a princípio definitivamente, portanto, MINHA cidade, MEU lar). Como já estou, de acordo com o vocabulário popular, de saco cheio "até o talo" dessa publicidade oficial a la Pollyana, fiz como sempre: apenas olhei e fiquei aguardando o término.

Essa noite, porém, um personagem me chamou a atenção: um rapaz todo sorrisos dizia com orgulho (duvido que autêntico, pois, afinal, é propaganda) que sua (?) cidade havia mudado para melhor, e uma das coisas destacadas foi que os "motoristas paravam na faixa" para permitir a travessia dos pedestres tão logo eles davam o sinal - as faixas vermelhas instaladas em várias vias da capital amazonense, teoricamente para facilitar as travessias principalmente em ruas de tráfego intenso. 

Ora, já bastava ouvir um suposto universitário afirmando, em outra peça publicitária da Prefeitura, que finalmente podia entrar em ônibus novinhos em folha e que nunca estavam lotados. Isso talvez em um sonho, uma realidade alternativa, um universo paralelo ou seja lá o que for, não em Manaus. O outro rapaz falando em educação de motoristas foi o fim da picada!

Nos quinze minutos (em média) do caminho de casa para o meu trabalho, passo por várias dessas faixas. Em frente ao Fórum Henoch Reis, na rua Valério Botelho de Andrade, São Francisco, existe uma. Nas avenidas Maceió e Mário Ypiranga há outras (na primeira,existem duas no meu trajeto). São inúteis. Antes eu ia até essas faixas e ficava fazendo o gesto tão divulgado em outras propagandas oficiais (erguer o braço horizontalmente) para que os carros, a esse sinal, parassem para permitir nossa travessia. Posso dizer tranquilamente que dois a cada dez motoristas são educados o suficiente para tal ato. Os demais simplesmente o ignoram ou são terrivelmente idiotas a ponto de acharem que você está fazendo sinal para um táxi ou um ônibus (mesmo que você não esteja em uma parada). Houve uma vez, na avenida Maceió, que passei pelo menos cinco minutos naquela faixa até aparecerem dois motoristas conscientes que pararam e permitiram minha travessia. Cinco minutos é uma eternidade para quem quer atravessar uma rua! Com alguma sorte, quando há uma pessoa idosa ou mulher grávida, a sensibilidade desses motoristas se aguça e eles param devidamente (com alguma sorte, friso bem, porque a maioria, se a impunidade fosse maior do que já é, simplesmente atropelariam, sem remorso algum, qualquer pessoa).

Bom, agora voltei ao lado selvagem do trânsito. Não adianta me deslocar para essas faixas e perder tempo. O jeito é arriscar a vida atravessando em outros lugares, porque não vai fazer diferença. Daí o fato de o rapaz dizer que "os motoristas param na faixa" me fizeram, em bom português, "subir nas tamancas". Não critico a Prefeitura por querer mostrar seu trabalho, seja ele bem ou mal feito para nós. É o papel da propaganda, é o papel de todo administrador. Se falar na falta de educação do povo, vai ser malhado, pode esquecer reeleição ou qualquer outra coisa. O negócio é não mexer na ferida da ausência quase total de colaboração da população com o administrador municipal. 

Outro exemplo de como isso incomoda: a Prefeitura mostra o complexo da Ponta Negra lindo, perfeito, mas não mostra que uma cambada de porcalhões danifica o patrimônio público, joga lixo por todos os lados, ultrapassa os limites da poluição sonora. Isso deveria ser mostrado em campanhas ostensivas, fazer o babaca se enxergar nesses trabalhos de conscientização. Só dizer o que deve ser feito e o que não deve ser feito não basta. Mas pelas razões que expus anteriormente, para eles é melhor não mexer com o eleitor. Pelo menos é o que parece.

Opções? Vamos ver o que existe por aí:

1) semáforos para pedestres: é aparentemente a melhor ideia. O transeunte aperta o botão e espera o sinal vermelho para os condutores pararem, podendo, assim, fazer a travessia tranquilamente. Porém, há vândalos na cidade, vagabundos sem  noção de vida em sociedade. Se quebram uma "corujinha", como foi noticiado por esses dias, imagine esses semáforos de fácil acesso. Quando não é o vândalo, é o transeunte equivocado, que insiste em apertar o botão do semáforo várias e várias e várias vezes, a exemplo do cidadão que pressiona seguidamente o botão de chamada do elevador, como se isso fosse tornar o equipamento mais rápido. De tanto ser "amassado", o equipamento acaba pifando. Ainda há mais um efeito colateral: a retenção do tráfego em avenidas de grande movimento.

2) passarelas: alternativa mais segura, mas infelizmente ignorada por uma boa parte da população. Eles preferem ziguezaguear entre os carros a fazer um pouco de exercício subindo escadas ou rampas. Na avenida André Araújo, nas proximidades da Secretaria de Estado da Fazenda, é possível ver essa situação: pessoas se arriscando sob a passarela que poderia eliminar riscos de atropelamento. Depois que sentem no lombo o peso do veículo, querem culpar a Prefeitura, o governo, a Dilma ou o Papa. Claro, ninguém admite que é idiota, por maior que seja o tamanho de sua inconsequência.

3) educação para o trânsito: bem feita, mostrando a boa vontade em incentivar as pessoas a cumprir seu papel. Mostra como é possível haver civilização nas ruas de Manaus e como deve ser a participação de cada um - pedestre ou motorista. Surtiu efeito? Imediato, não, e também seria impossível. Mas não vejo sinais de que a longo prazo isso aconteça.

É, senhores administradores, a coisa está feia. Que tal algo mais radical? Em meu trabalho, cheguei a comentar que estava prestes a tomar uma atitude para fazer certas pessoas vestirem a carapuça da imundície: colocar no banheiro masculino do nosso andar (e conseguindo uma cúmplice para fazer o similar no banheiro feminino) uma placa com os seguintes dizeres: "Não transforme este banheiro em seu chiqueiro particular. Não jogue guimbas de cigarro nos mictórios nem deixe papéis-toalhas jogados sobre as pias" e outras coisas. Ou seja, nada de palavras bonitas ou eufemismos, mas sim que atinjam diretamente na essência os porcalhões, mostrando que há quem se importe, quem saiba como esses imundos são. E me referi a educação ambiental. No trânsito, a coisa é mais complicada, porque lida com tempo - as pessoas hoje vivem com pressa para tudo, mesmo sem razão aparente, e são egoistas a ponto de não ligar para regras e campanhas, como bem se vê.

Enquanto isso, a Manaus ideal só existe na publicidade - de certa forma, enganosa.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Comentário: série "A profecia" (The Omen/1976, Damien: Omen II/1978, The final conflict/1981, Omen IV: the awakening/1991)

Harvey Stephens, intérprete de Damien no filme de 1976

Em Roma, o filho do diplomata Robert Thorn (Gregory Peck) morre ao nascer, notícia esta dada pelo padre Spiletto (Martin Bensom) ao pobre pai em um hospital da capital italiana. Receoso de que a notícia abale a esposa Katherine (Lee Remick), Robert aceita esconder-lhe a notícia e, por sugestão do próprio sacerdote, recebe um recém-nascido cuja mãe morrera no parto no mesmo momento que o bebê dos Thorn, apresentando-o à mulher como se fosse aquele gerado pelo casal. A adoção do menino, batizado de Damien, é o início de um complô satanista para a ascensão do Anticristo e seu domínio sobre o mundo.

Assim começa "A profecia", de 1976, dirigido por Richard Donner a partir do livro homônimo de David Seltzer (tive a oportunidade de lê-lo várias vezes e confirmo que é um dos mais arrepiantes que já li). Como não poderia deixar de ser com um filme de grande repercussão na época (era a década de 1970 e o terror psicológico estava em alta), surgiram duas continuações razoáveis (a terceira foi melhor que a segunda) e, logo depois, um desastre cinematográfico completamente fora do contexto da trilogia. Felizmente, a pretensa transformação dessa interessante e livre interpretação do livro do Apocalipse bíblico em grande bilheteria terminou por ali.

Katherine Thorn (Lee Remick)
No primeiro filme,  fatos estranhos cercam a infância de Damien (Harvey Stephens): no seu aniversário de 5 anos, a babá comete suicídio por enforcamento na frente de todos os convidados. Dias depois, uma nova governanta, a sra. Baylock (Billie Whitelaw), aparece para substitui-la - na verdade, é mais uma satanista do complô diabólico, cuja intenção é cuidar do pequeno Anticristo, protegendo seu segredo. Enquanto isso, a gênese da criança diabólica é levada a conhecimento do cético Robert Thorn pelo padre Brennan (Patrick Troughton), um dos conspiradores satanistas que participou do ato de concepção do filho de Satanás (criança nascida de uma chacal, sugerindo um ritual no qual o animal foi fecundado pelo demônio materializado), agora arrependido de participar do plano demoníaco. Ao procurar o agora embaixador norte-americano na Grã-Bretanha, Brennan é rechaçado: para Thorn, o sacerdote atormentado seria um chantagista que, ao alegar conhecer a verdade sobre o nascimento de Damien, agora com cinco anos de idade e interpretado por Harvey Stephens, poderia estar atrás de dinheiro pelo seu silêncio. 

Alertado sobre os riscos que ele e a esposa corriam por causa de Damien, Robert Thorn não dá crédito ao sacerdote, mas começa a questionar seus avisos ao saber da sua estranha morte: no mesmo dia do encontro de ambos, Brennan morre em um acidente bizarro, no qual, durante uma súbita tempestade, é atingido por um mastro caído de uma torre de igreja que lhe atravessa o corpo. Entra em cena o fotógrafo Keith Jennings (David Warner), testemunha dos estranhos fatos com relação a Damien, com quem o embaixador iniciará uma investigação em busca da terrível verdade sobre a criança e o reinado de terror que se aproxima. Não vale a pena entrar em detalhes sobre o desfecho da história para respeitar quem eventualmente não tenha assistido o filme. Portanto, nada de spoilers por aqui.

Gregory Peck (Robert Thorn)

Jonathan Scott-Taylor (à dir.) como o adolescente Damien
Em "Damien: profecia II", o Anticristo agora é um adolescente (Jonathan Scott-Taylor) que mora com os tios Richard (William Holden), irmão de Robert, e Ann Thorn (Lee Grant), sua segunda esposa, e o primo Mark (Lucas Donat), filho do primeiro casamento de Richard. É nesse segundo capítulo da saga que ele vai descobrir suas origens por meio dos seus protetores, entre eles o sargento Neff (Lance Heriksen), da escola militar onde Damien e Mark estudam. A princípio assustado, o garoto começará a apreciar sua natureza maligna e utilizar seus poderes para sua escalada rumo ao poder absoluto, cujo primeiro passo é eliminar todos os que cruzarem seu caminho para impedir sua ascensão ao grupo das indústrias Thorn, incluindo a própria família.

Sam Neill interpretou Damien já adulto e poderoso
A trilogia termina com "O conflito final", em que vemos Damien aos 33 anos (Sam Neill), agora presidente das indústrias Thorn, um conglomerado com atividades em todo o planeta, inclusive ações humanitárias de fachada, na verdade tramóias que visam o controle total sobre a produção de alimentos e armas em nível global. Com o poder total em mãos e rumo à presidência dos Estados Unidos, Damien descobre que o renascimento de Cristo está para acontecer no Reino Unido e não mede esforços para impedir o fato, utilizando seus seguidores para promover uma série de assassinatos de bebês, repetindo o massacre de inocentes executado a mando do rei Herodes relatado no Novo Testamento. Porém o novo Messias está protegido por um grupo de sacerdotes que também tentarão eliminar o Anticristo. Essa batalha entre o Bem e o Mal torna essa continuação melhor que a segunda parte, que foi um tanto "parada".

Já "A profecia IV: o despertar" aproveita um gancho fraco e quase imperceptível deixado no final do terceiro filme. Agora uma menina repete os passos de Damien no primeiro filme. Somente o argumento é aproveitado, e a referência à trilogia não passa de uma citação sobre uma vaga ligação entre a criança e Damien Thorn. Fraco, esquecível, nem merece muitas palavras. Vale apenas como mera curiosidade, assim como o remake de 2006, no qual o menino que interpreta o Anticristo não consegue de longe superar a imagem de inocência aterrorizante de Harvey Stephens.

"A profecia" tornou-se uma das minhas sagas de terror preferidas sobretudo pelo interessante ponto de vista interpretativo das Sagradas Escrituras - o mar revolto (o surgimento do Anticristo no mundo da política), o significado do número 666 (no caso, o sexto dia, o sexto mês, a sexta hora relativos ao nascimento de Damien) e os sinais do Apocalipse são bem colocados tanto no livro quanto nos filmes. Mais ainda, a trilha sonora de Jerry Goldsmith no primeiro filme ajuda no clima sinistro e é uma das melhores já feitas, ao lado de outras de compositores do naipe de Bernard Hermann, responsável pelas trilhas de "Psicose" e "Um corpo que cai". Embora com todos esses aspectos positivos, uma coisa ainda há que ser dita: o livro é infinitamente melhor que o filme!

terça-feira, 12 de junho de 2012

Comentário: "Amém" (Amen, 2002)

O oficial nazista Kurt Gerstein foi uma das testemunhas do processo de extermínio das populações "indesejáveis" (principalmente a judaica) da Europa sob ocupação do Terceiro Reich, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Seu depoimento escrito foi conhecido após o final do conflito e com a descoberta (aliás, confirmação) das atrocidades do regime de Adolf Hitler, principalmente a máquina genocida movida contra judeus, ciganos, homossexuais e outras minorias consideradas inferiores sob o ponto de vista da "raça ariana superior". Gerstein foi o responsável pelo desenvolvimento do Zyklon B, produto criado para utilização sanitária mas que teve o uso desviado para o assassinato em massa nos campos de extermínio. Diz a História, também, que o oficial tentou levar a conhecimento do Vaticano as barbaridades cometidas pelos carrascos após testemunhar o uso do produto nos campos de Belzec e Treblinka, dois dos centros de matança daquela época.

Kurt Gerstein (Ulrich Tukur, à direita)
A história de Kurt Gerstein e da inércia da Igreja Católica diante do Holocausto é contada no filme "Amém", dirigido por Costa-Gavras em 2002. Após ver a morte de famílias judias inteiras nas câmaras de gás de Belzec, o oficial, interpretado por Ulrich Tukur, tenta levar as informações sobre o fato ao Papa Pio XII (Marcel Iures), encontrando apoio no padre Ricardo Fontana (Mathieu Kassovitz). No entanto, interesses políticos impedem uma posição do Vaticano a favor dos perseguidos, e assim a Solução Final segue em andamento, até quando os judeus de Roma começam a ser arrebanhados para deportação aos campos de morte.

Ricardo Fontana (Mathieu Kassovitz)
Não há cenas típicas dos filmes sobre o tema do Holocausto, restringindo-se a trama às relações entre a Igreja Católica e o Terceiro Reich. O extermínio dos judeus é sugerido pelas imagens de trens de gado partindo fechados para os campos e retornando abertos e vazios, bem como da visão de Gersten, à distância e à noite, da tentativa dos criminosos de esconder os vestígios do assassinato em massa, desenterrando e queimando os cadáveres de suas vítimas. Porém, o filme ainda faz menção a um fato pouco explorado na história da ditadura nazista: o programa de "eutanásia" executado antes da Segunda Guerra Mundial na Alemanha, no qual milhares de cidadãos portadores de algum tipo de deficiência (mental ou física), independente de raça ou nacionalidade, foram eliminados em diversos centros médicos, asfixiados por monóxido de carbono, em nome da "purificação" da raça e como uma prévia ao que aconteceria anos depois em lugares como Auschwitz, Treblinka, Belzec, Chelmno e Sobibor. Enquanto houve posições enérgicas da Igreja Católica quanto às "mortes misericordiosas", o silêncio foi total quando a Solução Final estava a pleno vapor na década seguinte. 

O filme deixa em aberto uma espécie de cumplicidade da Igreja na cena final, com o passeio em uma tarde pós-guerra da liderança religiosa com o carrasco nazista. É o ponto em que Costa-Gavras alfineta a omissão do Vaticano, cujo impacto viria a ser minimizado décadas depois com o pedido de perdão do Papa João Paulo II à comunidade judaica pelas perseguições históricas executadas pelo Cristianismo, das quais a Inquisição e o Holocausto podem ser considerados os expoentes máximos.


terça-feira, 5 de junho de 2012

SÉRIES: "A sete palmos" (Six feet under, 2001-2005)


A família Fisher: Claire, Nate, Ruth e David

Exibida de 2001 a 2005 na HBO, a série "A sete palmos" (Six Feet Under), criada pelo roteirista Alan Ball, para mim foi um marco até agora insuperável entre as séries dramáticas estrangeiras exibidas no Brasil. Em cinco temporadas, muito drama com doses de humor negro marcaram a saga da família Fisher, donos da Funerária Fisher & Sons. Ruth (Frances Conroy), a mãe, e os filhos David (Michael C. Hall), Nate (Peter Krause) e Claire (Lauren Ambrose), suas relações afetivas e amorosas complicadas a partir da morte do patriarca, Nathaniel (Richard Jenkins) em um acidente de trânsito me trouxeram uma visão bastante interessante sobre a efemeridade da vida e o impacto da morte. 

Keith e David Fisher
Logo no primeiro episódio, descobrimos que Ruth tinha um amante, e apesar da consciência pesada assume o romance após ficar viúva; David, o filho do meio, é homossexual e tem uma relação conflituosa com o policial Keith (Matthew St. Patrick) por ter medo de "sair do armário"; Nate, o filho mais velho, vai visitar a família justamente no dia do acidente fatal do pai e acaba aos poucos sendo pressionado para assumir os negócios com David; e Claire, a adolescente rebelde típica, vive à margem da família, envolvendo-se em relacionamentos com pessoas tão complicadas quanto ela, como o viciado em drogas Gabriel Dimas (Eric Balfour, do remake de "O massacre da serra elétrica"), o sexualmente indefinido Russell (Ben Foster) e até mesmo a avançadinha Edie (Mena Suvari), com quem ensaia uma relação lésbica. 

Nate e Brenda
 Entra ainda na história Brenda (Rachel Griffiths, premiada por sua atuação), que tem uma relação de idas e vindas com Nate e com o próprio irmão bipolar Billy (Jeremy Sisto) e os pais desajustados, Margareth (Joanna Cassidy) e Bernard (Robert Foxworth). Federico "Ricco" Diaz (Freddy Rodriguez) é o auxiliar da funerária que "maquia" os cadáveres e sempre tenta se colocar além do posto de empregado dos Fisher. Na segunda temporada, entra em cena Lisa (Lilly Taylor), ex-namorada de Nate, que mora em Seattle e acaba entrando na vida da família Fisher de forma marcante.

O interessante de "A sete palmos" é a originalidade: cada episódio tem uma morte no início, e o finado, na maioria das vezes, conversa com os personagens, aconselhando-os em seus conflitos. Nathaniel acompanha do além as peripécias da sua víuva e filhos, tendo diálogos reveladores com todos, sem perder o sarcasmo que passou a expressar indiscriminadamente após sua morte. Ao final de toda a história e conhecido o destino de cada um dos personagens, resta aquela sensação de que a vida vale muito a pena ser aproveitada ao máximo, pois o tempo é implacável.


Estupidez sobre rodas

Trânsito é meu tema preferido, sobretudo quando é para, em bom dito popular, baixar o malho. Até que surja algum tipo de iniciativa que o coloque nos eixos, nada me resta senão falar mal, muito mal. 

Cada cidade brasileira tem sua peculiaridade no trânsito. Em Manaus, o caos aumenta a cada dia. Carros demais nas ruas, espaço de menos, falta de planejamento e temos estresse, barulho insuportável, congestionamentos, falta de educação, pessoas dirigindo pela contramão e acidentes acontecendo com frequência. 

Como se não bastassem os estúpidos das quatro rodas (ou mais, dependendo do veículo, que pode ainda ser um ônibus biarticulado ou um daqueles monstrengos mecânicos transportadores de contêineres), agora a turma das duas rodas resolveu entrar para o infame clube.

Explico a constatação. Hoje, a caminho do trabalho, deparei-me com uma cena inusitada: motoqueiros trafegando pelas calçadas. Não dirijo e não sou expert em legislação de trânsito, mas no meu limitado conhecimento sei muito bem que calçadas são feitas para pedestres, coisa aparentemente desconhecida para os infratores. Mas a esculhambação (não há expressão mais adequada) é tamanha e a falta de uma fiscalização mais rigorosa (e à prova de propinas ou "guaranás", como se diz aqui em Manaus) é cada vez mais gritante que os próprios condutores estão ditando as regras na capital amazonense. E são os maus motoristas que as ditam, os praticantes do famoso "jeitinho" para chegar mais rápido ao seu destino, incluindo-se aí dirigir pela contramão, fazer retorno em lugares proibidos, não respeitar a faixa de pedestres, trancar cruzamentos, fechar garagens com seu carro e ultrapassar ou fazer curvas sem sinalizar, só para citar algumas atitudes. Isso acontece todos os dias, em qualquer lugar de Manaus. E a cheia está aí para piorar ainda mais a situação.

A cena que descrevi acima aconteceu na rua Salvador, em Adrianópolis, entre as avenidas Umberto Calderaro e Mário Ypiranga, por volta das 7h. No último domingo, 3 de junho, presenciei algo mais revoltante ainda na avenida Constantino Nery, na altura do bairro São Geraldo: um sujeito fez retorno com seu veículo passando por cima do canteiro central, o qual já estava bem deteriorado. 

As desculpas para tentar justificar essas práticas infames são muitas, mas nunca condizem com a verdade, que é só uma: a maior parte dos motoristas de hoje são burros, preguiçosos e incrivelmente irresponsáveis, sem contar o descaso com o patrimônio público, como o do cidadão (se é possível considerá-lo assim) protagonista da segunda cena. Para piorar, o governo federal estimula a venda de veículos de todas as formas. Como se nas ruas brasileiras o que mais se carecesse fosse de carro para o povo. Povo mal educado, infelizmente.

Mais carros novos circulando, menos investimentos no sistema viário, mais aborrecimentos para pedestres e bons motoristas. E as novas gerações estão aí para aprender, como os filhos dos pais que, por preguiça pura, dirigem pela contramão na rua Natal, em Adrianópolis, para deixar suas crianças na escola, a poucos metros dali. Sem dúvida, é o futuro da nação.

Comentário: "Esposas em Conflito" (The Stepford Wives, 1975)


Em Stepford, Connecticut, a vida é tranquila. A cidade é pequena, limpa, as pessoas são amistosas. As esposas dos homens mais ricos do local são dedicadas donas de casa, voltadas para serviços domésticos e empenhadas em cuidar dos maridos e filhos. Para a fotógrafa amadora Joanna Eberhart (Katharine Ross), no entanto, tanta tranquilidade e passividade feminina são motivos de espanto e horror, típicos de quem está acostumada com a loucura urbana. Ela acaba de mudar-se da vida agitada de Nova York com o marido advogado, Walter (Peter Masterson), e as duas filhas pequenas, Kim (Mary Stuart Masterson, que depois de adulta ganharia destaque em "Tomates verdes fritos") e Amy (Ronny Sullivan).
 
Logo os Eberhart farão contato com seus vizinhos "domesticamente" corretos, os Van Sant, e Walter será introduzido à Associação Masculina, uma espécie de Clube do Bolinha onde, supostamente, os poderosos de Stepford discutem questões sociais da cidade, como eventos para arrecadação de fundos. Joanna, por outro lado, conhece Bobbie Markowe (Paula Prentiss), outra novata em Stepford que, como a fotógrafa, está a ponto de enlouquecer com a vida extremamente pacata da cidade.

Joanna e Bobbie tornam-se grandes amigas e decidem formar um grupo de discussão reunindo as demais esposas de Stepford. Conhecem Charmaine (Tina Louise), que compartilha das mesmas opiniões que ambas. O encontro do grupo, no entanto, é um desastre total, já que as demais mulheres preferem falar sobre tarefas domésticas. Ao descobrirem por meio de uma antiga moradora (e criadora de um pasquim de fofocas e fatos corriqueiros de Stepford) que no local existiu um dia uma associação feminina atuante, Joana e Bobbie começam a questionar o comportamento passivo das mulheres do lugar, e após uma estranha transformação nas atitudes de Charmaine, que de mulher ativa passa a ser uma dona de casa exemplar a ponto de permitir que o marido destrua sua quadra de tênis, elas começam a desconfiar de que algo muito errado está acontecendo sob a aparente tranquilidade de Stepford. E a descoberta é macabra.

O filme, dirigido por Bryan Forbes, é baseado no livro de Ira Levin (publicado na década de 1970 no Brasil pela editora Record com o título "As possuídas"), escritor de "O bebê de Rosemary" e "Os meninos do Brasil", também adaptados para o cinema. Recentemente, foi feita uma refilmagem, "Mulheres perfeitas", onde o clima sombrio e a metáfora cruel do pavor masculino diante da ascensão das mulheres deu lugar à comédia escrachada e crítica à mídia. Gosto muito do original, por ser um ponto de vista interessante do machismo em franca ameaça com os movimentos feministas. 

Considerado como cult, o filme também é um exemplo do impacto sobre a cultura popular. Até hoje, o termo "Stepford wife" é utilizado para definir mulheres dominadas ou extremamente subservientes ("robotizadas"). Mesmo 35 anos depois, "Esposas em conflito" ainda guarda um certo charme e vale a pena ser revisto.

VIAGEM: Cabaceiras, PB (06/04/2024)

Pela terceira vez viajei à Paraíba nas férias - e a primeira vez com meu marido Érico -, e essa foi a oportunidade de realizar um sonho, alé...