quinta-feira, 8 de setembro de 2022

TV: "O bem-amado" (1973)


Quando a novela "O bem-amado", escrita por Dias Gomes para a rede Globo em 1973, entrou para o catálogo do streaming Globoplay praticamente na íntegra (alguns capítulos foram reeditados por conta de problemas na recuperação de imagens), fiquei contente! Só me lembrava do seriado dos anos 1980, e pouca coisa, já que como criança não conseguia ficar acordado até altas horas para acompanhar as aventuras do ressuscitado Odorico Paraguassu (papel marcante na carreira do saudoso Paulo Gracindo) na pequena e fictícia cidade baiana de Sucupira, além do que, com pouco mais de 10 anos, eu não entendia muito daquele universo.

Um fato interessante que me fez ficar animado foi que a novela estreou na semana de meu nascimento (estreou na segunda, dia 22 de janeiro de 1973, e cheguei ao mundo na sexta-feira, dia 26). Não que haja um lado místico ou coisa que o valha. Simplesmente achei muito legal saber o que meus pais assistiam enquanto aguardavam meu nascimento. Coisas sentimentais, apenas.

Aos 49 anos, assisti os 178 capítulos da saga do corrupto, debochado e desumano recém eleito prefeito de Sucupira, Odorico Paraguassu, rumo ao cumprimento de uma bizarra promessa de campanha: a construção do primeiro cemitério da cidade, já que os eventuais sepultamentos aconteciam na localidade vizinha. Para isso, Paraguassu via oportunidades para inaugurar o campo santo até mesmo entre seus familiares, promovendo intrigas que certamente terminariam em confrontos e mortes, como atiçar a rivalidade entre as famílias Medrado e Cajazeiras, que se odiavam há gerações mas que haviam iniciado uma trégua.


Do lado do prefeito, seu fiel secretário e funcionário dos Correios de Sucupira, Dirceu Borboleta (nosso magnífico Emiliano Queiroz), facilmente manipulável, bobo, inseguro e virgem, às vezes chocado com as atitudes de Paraguassu mas com uma confiança cega no chefe do executivo municipal. Odorico também conta com apoio cego das três irmãs Cajazeiras - Judicéia ou Juju (Dirce Migliaccio), Dorotéia (Ida Gomes) e Dulcineia (Dorinha Duval). Metidas a moralistas, solteironas, as três são amantes de Odorico, mas sem que uma saiba da relação amorosa da outra com o prefeito.

A chegada a Sucupira do médico Juarez Leão (o saudoso Jardel Filho) para assumir o posto de saúde começa a girar as engrenagens dos conflitos na cidade: enquanto Odorico torce e encontra inúmeras oportunidades para causar mortes e inaugurar o cemitério, Leão o desafia lutando para atender a população e abastecer o local. No meio desse fogo cruzado, está a jovem filha de Odorico, Telma (a saudosa Sandra Bréa), a qual conhecera Juarez em Salvador após a morte da esposa dele, e se apaixonara, mas sendo repudiada pelo doutor, que bebe exageradamente por se sentir responsável pela perda da mulher, vítima de um erro médico.

As tramoias de Odorico ao longo da novela incluem, além das intrigas, tentar facilitar uma epidemia em Sucupira, deixar o sobrinho das Cajazeiras agonizar sem atendimento médico, incentivar tendências suicidas, estimular o pescador Zelão (Milton Gonçalves, um dos melhores personagens da televisão) de cumprir uma promessa e pular da torre da igreja com as asas que fabricou. De olho nas patifarias do prefeito está a família Medrado, com o patriarca Joca Medrado (Ferreira Leite), delegado em teoria, já que a função é exercida pela sua mulher Donana (Zilka Salaberry) desde que ele ficou paraplégico após um atentado, e tem apoio ainda de sua neta Anita (Dilma Lóes), namorada do jornalista Neco Pedreira (Carlos Eduardo Dolabella), dono do único jornal de Sucupira e opositor ferrenho de Paraguassu. O ponto alto das safadezas do prefeito é manipular o justiceiro José Tranquilino, conhecido como Zeca Diabo (Lima Duarte), que apesar de temido é um analfabeto doce e de alguma forma ingênuo que não entende o medo que inspira, gerado por exageros nas histórias que o envolvem. Trazendo o pistoleiro para seu lado, Odorico pretende usá-lo para provocar mortes e, enfim, inaugurar o cemitério.

O fato de o enredo mostrar uma sátira ao Brasil dos anos 1970, ainda sob jugo da ditadura militar, não deixou o tema envelhecer. O que se vê na trama de Dias Gomes é uma crítica atemporal, a julgar que em quase 50 anos as únicas mudanças que houve da Sucupira setentista para o Brasil da segunda década do século 21 são relativas a tecnologias, modernização de veículos, comunicações e transportes. No resto, somos a mesma Sucupira hipócrita e manipulável por políticos de má-fé, desprovidos de conhecimento, negacionistas e irresponsáveis. E essa preservação da identidade sucupirana, apesar de triste, não deixa de ser fascinante por mostrar que, ainda, permanecemos estacionados na roda do progresso. O que não faltam, em todos os escalões dos governos, são Odoricos a serem desmascarados mas ainda adorados.

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