Metáfora sobre a "ameaça" do feminismo na década de 1970, "As possuídas" (The Stepford wives) permanece atualíssimo, já que o tema não se esgota e permanece em voga diante do machismo de uma sociedade ainda com raízes profundas no patriarcado. Estão aqui todos os elementos que configuram essa característica: a mulher altiva, independente, que quer se desfazer dos laços de servidão e submissão transformados em regra social e nunca ultrapassados, os homens que não se conformam com essa ascensão e as mulheres servis, robotizadas pelos seus companheiros para consolidação de um status quo conveniente.
Na trama de Ira Levin, a fotógrafa Joanna Eberhart muda-se de Nova York para a pequena e pacata Stepford com o marido Walter, um advogado, e os filhos Pete e Kim. Uma vez lá, ela estranha o comportamento submisso das mulheres, voltadas apenas para afazeres domésticos. Enfim, um lugar onde os ventos da emancipação total feminina parecem nunca terem chegado.
Certo dia, Joanna conhece a extrovertida Bobbie Markowe, que se mudara para Stepford com o marido Dave xe o filho poucos meses antes, e encontra ali uma amiga à altura, com pensamentos iguais, destoando da atmosfera medieval da pequena cidade. Charmaine Wimperis, novata no lugar antes de Bobbie, une-se à dupla em conversas animadas sobre homens e planos futuros. Enquanto isso, o marido de Joanna passa a fazer parte da Associação Masculina de Stepford.
Quando repentinamente Charmaine muda seu comportamento e passa a se tornar submissa ao marido, a ponto de permitir que ele destrua sua quadra de tênis para ser substituída por um campo de golfe, Joanna e Bobbie passam a desconfiar de algo errado está acontecendo na cidade, e vasculhando seu passado, passam a suspeitar de uma conspiração em andamento articulada pelos maridos de Stepford, como um processo de lavagem cerebral. Mas a realidade é bem mais incrível e assustadora.
Levin adotou um estilo cativante para a narrativa. Começa com o cotidiano dos personagens, suas rotinas, suas amizades, conversas informais e divertidas. Aos poucos, os pequenos detalhes sugerem algo mais obscuro por trás de tudo, dando à história um ritmo gradualmente alucinante e angustiante até o final que nos deixa com a respiração suspensa.
"As possuídas" foi adaptado duas vezes para o cinema. A primeira (sobre a a qual escrevi aqui) foi em 1975, dirigida por Brian Forbes, com Katharine Ross como Joanna e Paula Prentiss como Bobbie. Essa primeira versão, batizada como "Esposas em conflito" no Brasil, guardou a atmosfera de paranóia e insegurança do livro. A segunda foi dirigida por Frank Oz em 2004 ("Mulheres perfeitas" no Brasil) e teve no elenco Nicole Kidman no papel de Joanna e Bete Midler como Bobbie, mas apelou para a comédia rasgada repleta de absurdos e caracterizações grotescas, dando um tom satírico ao tema da obra, até mesmo impondo um "final feliz" como uma revanche, mas ainda assim patético. Talvez por isso eu tenha detestado (ver Glenn Close em um personagem tosco foi bem constrangedor), apesar de uma abordagem interessante sobre o medo masculino das conquistas femininas. Prefiro a seriedade e a reflexão da obra escrita e sua primeira versão cinematográfica.
Curiosamente, depois do filme de 2004 o livro foi relançado no Brasil aproveitando o título da segunda versão. A primeira permanece como um filme cultuado. Eu já o assisti mais de 10 vezes e continuo amando.
Fica a dica.
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