terça-feira, 13 de setembro de 2022

LIVROS: "O bom doutor de Varsóvia", de Elisabeth Gifford (2018)


Janus Korczak, pseudônimo de Henry Goldszmit, foi um pediatra, pedagogo e autor de livros infantis judeu com grande respeito na Polônia, que jamais abandonou as crianças de seu orfanato durante a ocupação nazista de Varsóvia até ser enviado com elas para a morte nas câmaras de gás de Treblinka em 5 de agosto de 1942, durante as grandes deportações do gueto da capital polonesa que resultaram no assassinato em massa de cerca de 300 mil judeus ali aprisionados, dos estimados 500 mil residentes.

A história de seus atos corajosos e destino trágico é contada paralelamente à de Misha e Sophia, jovem casal que se apaixona durante seu trabalho com Korczak, mas que veem sua vida mudar radicalmente com a invasão nazista e a criação do gueto de Varsóvia. Tentando ajudar as crianças cuidadas pelo pedagogo, eles também buscam manter suas famílias a salvo das atrocidades dos invasores alemães e tentar garantir seu próprio futuro no inferno criado pelo Terceiro Reich. É assim que o jovem casal sai da cidade, mas apenas para testemunhar os terrores que o povo judeu já estava sofrendo em outras localidades.

É um relato comovente que reproduz momentos já conhecidos de quem lê sobre o tema, como o violento pogrom de julho de 1941 em Lvov, então parte da Ucrânia, atrocidades testemunhadas por Misha e Sophia em sua fuga dos horrores da capital polonesa, e hoje registrado em fotos disponíveis na internet, e o drama de Adam Czerniakow, líder do Conselho Judeu de Varsóvia que sofreu terrores psicológicos dos nazistas e escolheu o suicídio quando foi obrigado a colaborar com a seleção de pessoas nas deportações para Treblinka.

A obra traz ainda um posfácio onde a autora narra os destinos de Misha, Sophia e de outros sobreviventes de suas famílias após a libertação, bem como do resgate da importância de Janus Korczak na história da resistência ao nazismo, ainda que sem final feliz.

LIVRO: "As possuídas", de Ira Levin (1972)


Metáfora sobre a "ameaça" do feminismo na década de 1970, "As possuídas" (The Stepford wives) permanece atualíssimo, já que o tema não se esgota e permanece em voga diante do machismo de uma sociedade ainda com raízes profundas no patriarcado. Estão aqui todos os elementos que configuram essa característica: a mulher altiva, independente, que quer se desfazer dos laços de servidão e submissão transformados em regra social e nunca ultrapassados, os homens que não se conformam com essa ascensão e as mulheres servis, robotizadas pelos seus companheiros para consolidação de um status quo conveniente.

Na trama de Ira Levin, a fotógrafa Joanna Eberhart muda-se de Nova York para a pequena e pacata Stepford com o marido Walter, um advogado, e os filhos Pete e Kim. Uma vez lá, ela estranha o comportamento submisso das mulheres, voltadas apenas para afazeres domésticos. Enfim, um lugar onde os ventos da emancipação total feminina parecem nunca terem chegado.

Certo dia, Joanna conhece a extrovertida Bobbie Markowe, que se mudara para Stepford com o marido Dave xe o filho poucos meses antes, e encontra ali uma amiga à altura, com pensamentos iguais, destoando da atmosfera medieval da pequena cidade. Charmaine Wimperis, novata no lugar antes de Bobbie, une-se à dupla em conversas animadas sobre homens e planos futuros. Enquanto isso, o marido de Joanna passa a fazer parte da Associação Masculina de Stepford.

Quando repentinamente Charmaine muda seu comportamento e passa a se tornar submissa ao marido, a ponto de permitir que ele destrua sua quadra de tênis para ser substituída por um campo de golfe, Joanna e Bobbie passam a desconfiar de algo errado está acontecendo na cidade, e vasculhando seu passado, passam a suspeitar de uma conspiração em andamento articulada pelos maridos de Stepford, como um processo de lavagem cerebral. Mas a realidade é bem mais incrível e assustadora.

Levin adotou um estilo cativante para a narrativa. Começa com o cotidiano dos personagens, suas rotinas, suas amizades, conversas informais e divertidas. Aos poucos, os pequenos detalhes sugerem algo mais obscuro por trás de tudo, dando à história um ritmo gradualmente alucinante e angustiante até o final que nos deixa com a respiração suspensa.

"As possuídas" foi adaptado duas vezes para o cinema. A primeira (sobre a a qual escrevi aqui) foi em 1975, dirigida por Brian Forbes, com Katharine Ross como Joanna e Paula Prentiss como Bobbie. Essa primeira versão, batizada como "Esposas em conflito" no Brasil, guardou a atmosfera de paranóia e insegurança do livro. A segunda foi dirigida por Frank Oz em 2004 ("Mulheres perfeitas" no Brasil) e teve no elenco Nicole Kidman no papel de Joanna e Bete Midler como Bobbie, mas apelou para a comédia rasgada repleta de absurdos e caracterizações grotescas, dando um tom satírico ao tema da obra, até mesmo impondo um "final feliz" como uma revanche, mas ainda assim patético. Talvez por isso eu tenha detestado (ver Glenn Close em um personagem tosco foi bem constrangedor), apesar de uma abordagem interessante sobre o medo masculino das conquistas femininas. Prefiro a seriedade e a reflexão da obra escrita e sua primeira versão cinematográfica.

Curiosamente, depois do filme de 2004 o livro foi relançado no Brasil aproveitando o título da segunda versão. A primeira permanece como um filme cultuado. Eu já o assisti mais de 10 vezes e continuo amando. 

Fica a dica.

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

TV: "O bem-amado" (1973)


Quando a novela "O bem-amado", escrita por Dias Gomes para a rede Globo em 1973, entrou para o catálogo do streaming Globoplay praticamente na íntegra (alguns capítulos foram reeditados por conta de problemas na recuperação de imagens), fiquei contente! Só me lembrava do seriado dos anos 1980, e pouca coisa, já que como criança não conseguia ficar acordado até altas horas para acompanhar as aventuras do ressuscitado Odorico Paraguassu (papel marcante na carreira do saudoso Paulo Gracindo) na pequena e fictícia cidade baiana de Sucupira, além do que, com pouco mais de 10 anos, eu não entendia muito daquele universo.

Um fato interessante que me fez ficar animado foi que a novela estreou na semana de meu nascimento (estreou na segunda, dia 22 de janeiro de 1973, e cheguei ao mundo na sexta-feira, dia 26). Não que haja um lado místico ou coisa que o valha. Simplesmente achei muito legal saber o que meus pais assistiam enquanto aguardavam meu nascimento. Coisas sentimentais, apenas.

Aos 49 anos, assisti os 178 capítulos da saga do corrupto, debochado e desumano recém eleito prefeito de Sucupira, Odorico Paraguassu, rumo ao cumprimento de uma bizarra promessa de campanha: a construção do primeiro cemitério da cidade, já que os eventuais sepultamentos aconteciam na localidade vizinha. Para isso, Paraguassu via oportunidades para inaugurar o campo santo até mesmo entre seus familiares, promovendo intrigas que certamente terminariam em confrontos e mortes, como atiçar a rivalidade entre as famílias Medrado e Cajazeiras, que se odiavam há gerações mas que haviam iniciado uma trégua.


Do lado do prefeito, seu fiel secretário e funcionário dos Correios de Sucupira, Dirceu Borboleta (nosso magnífico Emiliano Queiroz), facilmente manipulável, bobo, inseguro e virgem, às vezes chocado com as atitudes de Paraguassu mas com uma confiança cega no chefe do executivo municipal. Odorico também conta com apoio cego das três irmãs Cajazeiras - Judicéia ou Juju (Dirce Migliaccio), Dorotéia (Ida Gomes) e Dulcineia (Dorinha Duval). Metidas a moralistas, solteironas, as três são amantes de Odorico, mas sem que uma saiba da relação amorosa da outra com o prefeito.

A chegada a Sucupira do médico Juarez Leão (o saudoso Jardel Filho) para assumir o posto de saúde começa a girar as engrenagens dos conflitos na cidade: enquanto Odorico torce e encontra inúmeras oportunidades para causar mortes e inaugurar o cemitério, Leão o desafia lutando para atender a população e abastecer o local. No meio desse fogo cruzado, está a jovem filha de Odorico, Telma (a saudosa Sandra Bréa), a qual conhecera Juarez em Salvador após a morte da esposa dele, e se apaixonara, mas sendo repudiada pelo doutor, que bebe exageradamente por se sentir responsável pela perda da mulher, vítima de um erro médico.

As tramoias de Odorico ao longo da novela incluem, além das intrigas, tentar facilitar uma epidemia em Sucupira, deixar o sobrinho das Cajazeiras agonizar sem atendimento médico, incentivar tendências suicidas, estimular o pescador Zelão (Milton Gonçalves, um dos melhores personagens da televisão) de cumprir uma promessa e pular da torre da igreja com as asas que fabricou. De olho nas patifarias do prefeito está a família Medrado, com o patriarca Joca Medrado (Ferreira Leite), delegado em teoria, já que a função é exercida pela sua mulher Donana (Zilka Salaberry) desde que ele ficou paraplégico após um atentado, e tem apoio ainda de sua neta Anita (Dilma Lóes), namorada do jornalista Neco Pedreira (Carlos Eduardo Dolabella), dono do único jornal de Sucupira e opositor ferrenho de Paraguassu. O ponto alto das safadezas do prefeito é manipular o justiceiro José Tranquilino, conhecido como Zeca Diabo (Lima Duarte), que apesar de temido é um analfabeto doce e de alguma forma ingênuo que não entende o medo que inspira, gerado por exageros nas histórias que o envolvem. Trazendo o pistoleiro para seu lado, Odorico pretende usá-lo para provocar mortes e, enfim, inaugurar o cemitério.

O fato de o enredo mostrar uma sátira ao Brasil dos anos 1970, ainda sob jugo da ditadura militar, não deixou o tema envelhecer. O que se vê na trama de Dias Gomes é uma crítica atemporal, a julgar que em quase 50 anos as únicas mudanças que houve da Sucupira setentista para o Brasil da segunda década do século 21 são relativas a tecnologias, modernização de veículos, comunicações e transportes. No resto, somos a mesma Sucupira hipócrita e manipulável por políticos de má-fé, desprovidos de conhecimento, negacionistas e irresponsáveis. E essa preservação da identidade sucupirana, apesar de triste, não deixa de ser fascinante por mostrar que, ainda, permanecemos estacionados na roda do progresso. O que não faltam, em todos os escalões dos governos, são Odoricos a serem desmascarados mas ainda adorados.

VIAGEM: Cabaceiras, PB (06/04/2024)

Pela terceira vez viajei à Paraíba nas férias - e a primeira vez com meu marido Érico -, e essa foi a oportunidade de realizar um sonho, alé...