sábado, 24 de novembro de 2018

Um breve desabafo sobre depressão

Você sorri, se diverte, conversa normalmente com seus amigos, trabalha tranquilamente. Mas dentro de sua alma existe uma espécie de nuvem pesada, sombria, como se houvesse um ser estranho em permanente vigia e, ao primeiro descuido, ataca sua mente. Mais ou menos assim é a depressão.

Não é fácil perceber a não ser quando a crise chega, sendo o disparo feito por alguma situação negativa, seja um problema no trabalho, uma crise no relacionamento, um problema financeiro. Obviamente que diante desses problemas qualquer um fica aborrecido, mas na pessoa que sofre de depressão isso tem uma força muito maior. É uma mistura violenta de impotência, ansiedade, angústia, desespero, falta de esperança, desconfiança, inferioridade, solidão e medo. Um sofrimento que pode não existir, mas na cabeça do depressivo o mundo é outro.

Há anos luto contra a depressão, e até então tenho me saído relativamente vitorioso. Venho de uma família numerosa, o mais novo de nove irmãos, com pais migrantes do Ceará. Crescemos em uma casa de madeira, meu pai trabalhando para nos sustentar com dignidade, minha mãe cuidando dos filhos, preocupados com nossos estudos. Deu tudo certo com essa batalha. Hoje todos tem vidas com o mínimo de tranquilidade e paz possível para uma família.

Nesse meu mundo, não sei quando o disparo veio. Tive mais privilégios que meus irmãos, pois meu pai conseguiu para mim uma bolsa de estudos em sua empresa logo que mudamos da casa de madeira na zona centro-sul de Manaus para a casa de alvenaria em um conjunto residencial na zona centro-oeste da cidade, no final de 1980. Em 1982, ingressei em um colégio particular graças a essa bolsa. Levei bomba e repeti a quarta série, mas continuei na escola em 1983. Daí em diante foi aprovação direta (ou na recuperação, em duas ocasiões) até minha formatura no ensino médio (na época chamado de segundo grau) em 1990. Jà então eu trabalhava e com ajuda de um dos meus irmãos continuei na escola nos últimos três anos, pois a bolsa só duraria até o final do primeiro grau (ensino fundamental).

Com essa sorte, como poderia me tornar uma pessoa depressiva? Quando percebi que a tristeza se tornou incomum, fora do que se pode chamar de normal? Tive mais sorte na educação (pelo menos até o segundo grau, quando a qualidade do ensino na escola particular caiu muito), então deveria estar feliz por ter aproveitado melhor a instrução que tive. Não foi bem isso que aconteceu, e anos depois começaram as crises estranhas. Eu me afastava dos meus colegas, desenvolvi uma paranoia e até mesmo um sentimento de inferioridade, alimentado principalmente pelo bullying sofrido por ser negro (em grande intensidade) e de fora dos círculos dos riquinhos (em grau muito menor, pois felizmente conheci colegas dignos, independente de sua condição econômica).

Aos 18 anos passei no meu primeiro concurso público para uma instituição federal, após pouco mais de um ano desempregado (o primeiro emprego era temporário até o limite de 17 anos e 10 meses, mas a era Collor provocou uma reação em cadeia que levou à minha demissão antecipada, assim como a de outros jovens na minha situação). Também passei no primeiro vestibular, para Jornalismo. Foram anos sensacionais de aprendizado tanto em relação à profissão que escolhi quanto no convívio social, deixando para trás os personagens da escola particular (muitos deles limitados) e ingressando em um universo muito mais diverso de ideias e visões e comportamentos. Ali virei gente, no sentido mais amplo da expressão.

Com o passar dos anos evolui profissionalmente, mudei de emprego mais de uma vez, fiz grandes amizades, conquistei o que sempre quis, mesmo em meio a dificuldades eventuais, principalmente financeiras, mas sempre achando solução para tudo. Ainda hoje é assim.

Todo esse rodeio sobre minha vida até agora, quando estou prestes a completar 46 anos, é só para lançar a questão: com uma vida de certa forma melhor que de outras pessoas, como posso ser depressivo?

Começou na escola, com o bullying? Não creio, mas tenho certeza de que houve influência.

(Aqui faço um parêntese para criticar os que ficam debochando dos efeitos posteriores do bullying: eles existem e podem ser terríveis. Se alguém passou por isso e superou, parabéns. Mas nem todas as cabeças funcionam do mesmo jeito)

Sofri assédio moral no trabalho? Sim, mas sempre soube lidar com isso. Exceto uma ocasião, que serviu como gatilho para uma severa crise depressiva, da qual tratarei mais adiante.

Então você pode ver como fica difícil encontrar um motivo para a depressão. É mais fácil saber o que pode contribuir para afetar negativamente a mente de uma pessoa, pois o depressivo, como expus no início deste texto, possui um tipo de nuvem obscura na alma, escondida, esperando a oportunidade para se revelar e encobrir, atacar. Nós sentimos essa nuvem e a tentamos ignorar. Eu tenho conseguido, mas infelizmente nem todos conseguem e sucumbem.

Há fatos de minha infância - sobre os quais não estou preparado para falar, mas é de conhecimento de amigos muito íntimos - que gostaria de apagar da mente, mas é impossível. Essa maldita nuvem negra fica eventualmente empurrando isso para minha consciência como forma de vergonha. Seria esse um elemento que fez gerar essa negatividade que insiste em me atormentar?

Dúvidas e mais dúvidas. Questões e mais questões.

Há pouco mais de 11 anos, cheguei no fundo do poço graças a uma soma de fatos cruéis. Uma mudança na empresa jornalística em que eu trabalhava abalou a mim e todos os meus colegas. A companhia iria mudar de mãos, e nesse rastro de mudança haveria cortes (não convém entrar em detalhes, pois muito do que aconteceu ali não se pode provar até hoje, mesmo sabendo que todas as histórias são verdadeiras). Havia tensão constante, descaso com os profissionais, os quais passaram a serem "fritados" até o momento de serem desligados. Foi o pior caso de assédio moral que sofremos.

Em junho daquele ano (2007) perdi uma grande amiga da maneira mais absurda: supostamente um suicídio por envenenamento, mas os fatos posteriores apontaram que poderia se tratar de um homicídio (o provável causador está morto, portanto a verdadeira história foi para o túmulo). Foi um grande choque e um terrível trauma. Aí acontecem os problemas no trabalho, o consumo de bebidas alcoólicas aumenta deliberadamente. A solução foi mostrada pela nuvem obscura: várias cartelas de comprimidos e a maior mistura de bebidas que se pode imaginar. Ainda tive forças para me despedir por mensagens de vários de meus bons amigos. Creio que graças a isso fui salvo. Foi dado um alerta. Vômitos, ida ao hospital, um sermão e uma conversa com uma pessoa maravilhosa - que infelizmente não está mais entre nós há quase três anos - conseguiram me resgatar.

Sim, cheguei ao fundo do poço. Eu me recuperei e tomei a decisão de me livrar de pelo menos um desses péssimos combustíveis da depressão: larguei o trabalho onde estava sendo tratado como lixo, passei a me dedicar apenas ao local onde meses antes (justamente quase uma semana após a morte de minha amiga) começara a trabalhar (segundo concurso público em que fui aprovado). Afastar essa energia ruim ajudou muito, e as coisas voltaram aos eixos.

Mas a nuvem sombria nunca me deixou. Tentou ensaiar uma volta em 2010 quando meu pai teve um AVC e ficou em cima de uma cama de hospital até morrer seis meses depois, aos 85 anos. Tive ajuda de amigos e superei. Porém consegui outras formas de lutar contra ela: limitei meu círculo de amizades, mensurei minha diversão (antes "enfiava o pé na jaca", agora sou mais "light"), achei outras maneiras de ocupar a mente (séries, retorno aos livros, cinema e, principalmente, viagens). Procuro evitar pensar demais no futuro e busco viver o presente. Tento encarar as dificuldades com o mínimo de calma possível.

A nuvem sombria tem perdido a batalha, mas não desiste nunca. Está aqui, eu sinto. Tem horas que eu pareço prestes a sucumbir quando algo dispara. De repente minha paixão pelo cinema arrefece. Não consigo me concentrar nas leituras. Meu desejo por viagens às vezes se transforma num fiozinho frágil. As tensões dos últimos meses no país (que refletem no meu trabalho de todos os modos) causaram isso. Os horrores que o mundo todo tem presenciado também. Mas não posso fechar os olhos, é uma realidade a ser enfrentada. Sinto muito, dona nuvem sombria, mas não ganhas essa me tornando um alienado.

É difícil, gente. Não tive ainda confiança suficiente para procurar a ajuda profissional de que todos falam. Nem sei se a conseguirei um dia.

Mas sigo tentando.

Muita luz a todos!

domingo, 30 de setembro de 2018

FILMES: "Boogie nights - Prazer sem limites" (Boogie nights, 1997)


A década de 1970 viu a popularização do cinema pornográfico, antes marginalizado e agora prestes a entrar em um "namoro" com o mundo da sétima arte. Foi nessa época que surgiram os três ícones do gênero: "Atrás da porta verde" (1972), "Garganta profunda" (1972) e "O diabo na carne de miss Jones" (1973), e vários nomes se tornaram mitos ao longo daquele período até os anos 1980, como Linda Lovelace, Marilyn Chambers, Georgina Spelvin, Harry Reems, Gerard Damiano, John Holmes, Ginger Lynn, Amber Lynn,  e tantos outros. É exatamente essa fase áurea - e depois sua decadência - que Paul Thomas Anderson nos mostra em "Boogie nights", cujo subtítulo no Brasil, "Prazer sem limites", considero meio apelativo.

As ilusões, os dramas pessoais e a dura realidade de quem entrou nesse mercado naqueles anos - e que continuam até hoje - são contados a partir do jovem Eddie Adams (Mark Wahlberg, que recentemente renegou o papel, considerando-o "um grande erro"), um garçom de 17 anos que vive com os pais em uma pequena da Califórnia, em 1977. Entre as escapadinhas para transas com a vizinha afoita, as brigas violentas com a mãe e a revolta com o pai dominado e impotente diante das grosserias da esposa, o rapaz faz bicos em festas servindo o público, e nas devidas oportunidades exibindo, em troca de alguns dólares, seu "dote": um pênis avantajado. Essa característica logo é descoberta em uma dessas noites pelo diretor de filmes pornográficos Jack Horner (Burt Reynolds).

É assim que, logo depois, Eddie dá lugar a Dirk Diggler, nome artístico sugerido pelo próprio jovem. O sucesso é imediato, e nos anos seguintes Eddie/Dirk experimenta as delícias de sua nova vida - e logo depois a desgraça. Seu "reinado" como estrela premiada do hardcore dura sete anos, tempo em que se torna arrogante e egoísta, e assim começa sua derrocada, principalmente com o abuso das drogas.


Outros personagens são marcantes: Amber Waves (Julianne Moore), uma das principais atrizes do gênero, que enfrenta o ex-marido na justiça para tentar ver o próprio filho; a Rollergirl (Heather Graham), jovem que brilha no gênero mas tem seus traumas; Scotty J. (o saudoso Philip Seymour Hoffman), da equipe de filmagem, homossexual que desenvolve uma atração por Eddie/Dirk; Reed Rotchild (John C. Reilly), ator pornô que se torna grande amigo de Eddie e o acompanha na queda livre de sua carreira; Little Bill (William H. Macy), membro da equipe de filmagem que é humilhado e traído abertamente pela mulher (interpretada pela veterana atriz pornô Nina Hartley); e Buck Swope (Don Cheadle), que divide seu tempo como ator pornográfico e vendedor.

A história de Dirk e seus amigos acompanha o desenvolvimento da própria indústria pornográfica, que com o advento do VHS nos anos 1980 deixou a produção cinematográfica para enveredar pelas produções mais baratas e de consumo imediato, feitas em vídeo. O próprio Jack Horner resiste à ideia no início, mas logo se rende à novidade. Ao lado desse contexto histórico do gênero, "Boogie nights" explora a veia social cínica norte-americana, que ao mesmo tempo consome e condena o trabalho dos artistas pornôs, um lado muito cruel desse mundo: Buck, por exemplo, busca financiamento para iniciar seu próprio negócio de vendas, mas apesar de reunir todos os requisitos para obter o dinheiro, tem o pedido negado por ser "pornográfico". O próprio Dirk sente na pele as consequências de entrar nesse mundo, quando, no fundo do poço, viciado em drogas e envolvido com gente barra pesada, é levado a se prostituir e é barbaramente espancado por um bando de valentões homofóbicos.

Como mostraria em seu filme seguinte, o espetacular "Magnólia" (no qual aproveitaria boa parte do elenco brilhante de "Boogie nights"), Anderson abre uma brecha de esperança para todos os que caem nas sombras de suas escolhas.Assim acontece com Dirk e todos os outros no fundo do poço. Filme recomendável!

LIVROS: "Babi Iar", de Anatoly Kuznetsov (1966)

O escritor soviético Anatoly Kuznetsov (1929-1979) era quase um adolescente quando os alemães ocuparam sua cidade, Kiev, em 1941. As lembranças do jovem e das atrocidades cometidas pelos nazistas resultaram em "Babi Iar", um romance documentário de 1966 no qual Anatoly narra o sofrimento de seu povo durante os anos da invasão do exército de Hitler, principalmente a luta contra a fome e o medo constante de ser levado para o Babi Iar, uma ravina na qual aconteciam constantemente assassinatos de opositores e indesejáveis ao Terceiro Reich.

Babi Iar é conhecida como o local nos arredores de Kiev onde, nos dias 29 e 30 de setembro de 1941 - um mês após a invasão nazista -, 33.771 homens, mulheres e crianças judeus da cidade foram fuzilados metodicamente pelos Einsatzgruppen, tornando o lugar uma gigantesca vala comum. Mas opositores do regime e muitos cidadãos soviéticos foram também assassinados na ravina, fazendo com que o número total de vítimas nos dois anos de ocupação ficasse em torno de 200 mil pessoas.

Além do massacre dos judeus, narrado por Anatoly por meio do relato de uma sobrevivente, Dina Mirónovna, outro episódio relembrado foi o do time de futebol de Kiev, o Dínamo, chamado para disputar uma partida com o time alemão no verão de 1942. Os jogadores venceram os rivais, e por conta dessa vitória - que foi praticamente um ato de resistência contra os invasores -, foram levado ao Babi Iar e também assassinados.

A narrativa de Anatoly é forte, sobretudo quando expõe seus pensamentos de jovem diante dos invasores, uma mistura de raiva, medo e impotência, sua preocupação com o amigo judeu Churka Matza, com o pai no front e até mesmo com seu gato de estimação, Tito, e sua luta diária para sobreviver com sua família à escassez de alimentos.

Publicado no Brasil pela editora Civilização Brasileira, "Babi Iar" não teve relançamento mas pode ser encontrado em sebos.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

FILMES: "Bye bye Brasil" (1980)

O Brasil estava nos últimos anos da ditadura militar e nos primeiros momentos da transição para a democracia quando "Bye bye Brasil" chegou aos cinemas. O filme de Carlos Diegues, simples, cru e carregado de humor, trouxe uma visão de um país dentro de outro país, onde a tecnologia da televisão ainda não chegara e onde as ilusões do progresso cobravam seu alto preço.

É essa nova realidade que a "Caravana Rolidei", formada pelos artistas ambulantes Lorde Cigano (José Wilker), a dançarina e prostituta eventual Salomé (Betty Faria) e o musculoso e mudo Andorinha (Príncipe Nabor) quando chegam a uma pequena cidade do sertão nordestino e percebem que o seu público diminuiu. A culpa, Cigano constata, é das "espinhas de peixe", como ele jocosamente se refere às antenas de televisão: o povo começa a despertar para a caixa de imagens, abandonando o espetáculo mambembe. Então a caravana parte em busca de lugares onde a nova tecnologia ainda nem existe, pelas estradas do sertão, em direção ao sonho de riqueza anunciado por um caminhoneiro (Carlos Kroeber) que cruza com o grupo: Altamira, no Pará, terra de progresso, por onde a nova rodovia Transamazônica passa e conduz diversos sonhadores.


A essa altura, junta-se ao grupo um casal do interior: o sonhador sanfoneiro Ciço (Fábio Júnior) e sua esposa grávida Dasdô (Zaira Zambelli), submissa ao marido e boa cozinheira. Paralelo à luta pela sobrevivência, com episódios que chegam a ser hilários (como quando Cigano explode uma televisão em praça pública para forçar a população da cidade a procurar diversão da caravana, levando à expulsão dos artistas), Ciço se apaixona por Salomé, enquanto Dasdô passa aos poucos a ser assediada por Cigano.


As aventuras da trupe são emocionantes, revelando um Brasil mais real e cruel: o país da miséria, da falta de perspectivas, do descaso, da ganância, das obras faraônicas e da depredação. Em meio a isso, Salomé se recusa a ceder ao amor de Ciço mesmo após uma noite de sexo entre ambos, enquanto Dasdô vai cedendo a Cigano. Quando a filha do casal nasce, em plena estrada, a dançarina dá mais um ultimato ao sanfoneiro: "pegue sua mulher e sua filha e volte para casa". Ciço fica.


Quando o grupo chega a Altamira, percebe que foi ludibriado pelo caminhoneiro: a Transamazônica existia há mais tempo que o informado pelo caminhoneiro e a cidade estava praticamente "inchada" de aventureiros em busca de dinheiro. Quando Cigano perde o caminhão da caravana e todos os bens do grupo em uma aposta de queda de braço entre Andorinha e um rival, Salomé é levada a se prostituir. Andorinha, que se culpa pela desgraça de todos, abandona o grupo e desaparece. 

No final do filme, Carlos Diegues dedica a obra ao povo brasileiro do século 21, e isso pode ser entendido com o epílogo da história: forçado por Salomé e Cigano, Ciço embarca com Dasdô e a filha em um ônibus rumo a Brasília, enquanto os artistas seguem para Belém. Anos depois, na capital federal, todos voltam a se encontrar: Ciço e Dasdô com um grupo de música nordestina, acompanhados da filha; Salomé e Cigano, que conseguiram ganhar muito dinheiro com contrabando,  com uma nova "Caravana Rolidei", mais moderna e com novos integrantes, em busca de novas aventuras pelas estradas do país. Ou seja, um povo que sobrevive às dificuldades com muita luta, ainda que muito difícil. "O sol nunca mais vai se por", diz Cigano, rumo a um destino incerto, como na música tema de Chico Buarque.


FILMES: "Creepshow" (1982)

Um diretor badalado, um escritor popular em ascensão e uma lenda dos efeitos de maquiagem. Esse encontro só poderia dar bons frutos.

Era 1981. George Romero colhia frutos na carreira cinematográfica após lançar um marco com "A noite dos mortos vivos" na década de 1960; Stephen King já caíra no gosto popular após ter suas primeiras obras adaptadas para o cinema: "Carrie, a estranha" (1976) e "O iluminado" (1980), além da minissérie para a TV "Os vampiros de Salem" (1978); e Tom Savini ganhava admiradores por conta de seu trabalho impressionante com maquiagem e efeitos visuais em "Sexta-feira 13" (1980). Os três se juntaram (Romero como diretor, King como roteirista e Savini nos efeitos visuais) e criaram "Creepshow" (1982), que pode não ser uma obra espetacular dirigida por Romero, mas fascina ainda hoje pela originalidade na abordagem das histórias episódicas, agora fazendo uma justa homenagem às deliciosas revistas de terror das décadas de 1960-70, ao estilo da saudosa "Cripta do Terror", itens raros de colecionador.

"Creepshow" reuniu um elenco de atores veteranos e outros ainda iniciantes naqueles anos. Vemos aqui Fritz Weaver, Hal Halbrook, Adrienne Barbeau, Leslie Nielsen e outros atuando ao lado dos jovens Ted Danson e Ed Harris em cinco histórias curtas de terror transpostas de uma HQ de horror tomada do menino Billy (Joe Hill, filho de Stephen King que anos depois seguiria os passos do pai na literatura fantástica e de terror) pelo seu pai intolerante, Stan (Tom Atkins), e jogada na lata de lixo. À medida que o vento arrasta a revista e move suas páginas, as histórias começam a se transformar em tramas com atores reais, sem abrir mão dos efeitos gráficos (fundos coloridos, efeitos de luz azul ou vermelha, caixas de texto). O resultado é nostálgico!


Depois do prólogo onde são apresentados a revista e o condutor das histórias - um esqueleto encapuzado -, somos apresentados à história "Dia dos Pais". Nela, a família Grantham se reúne para o jantar tradicional da data: Sylvia (Carrie Nye), seus sobrinhos Cass (Elizabeth Regan) e Richard (Warner Shook), além de Hank (Eddie Harris), marido de Cass. Todos esperam Bedelia (Viveca Lindfors), que sete anos anos, naquela mesma data, matara o próprio pai, o velho intolerante Nathan Grantham (John Lormer), golpeando-o com um pesado cinzeiro, após saber que ele fora o mandante do assassinato de seu noivo e depois de ele atormentá-la exigindo um bolo pelo Dia dos Pais. Antes de encontrar os demais familiares (ela é tia de Sylvia), Bedelia visita o túmulo do velho Grantham e tem uma péssima surpresa: o cadáver putrefato sai da sepultura em busca do tal bolo, acabando com todos que cruzam seu caminho, a começar pela filha assassina. Humor negro de revirar o estômago!


A segunda história, "A morte solitária de Jordy Verril",  é marcante porque é protagonizada pelo próprio Stephen King. Canastrão até não poder mais, ele interpreta o caipira fracassado Jordy Verril, que vê uma esperança de mudar de vida quando um meteorito cai em sua propriedade: ele já se imagina ganhando muito dinheiro com a descoberta. Ao apanhar o objeto espacial, entretanto, ele acaba libertando uma espécie de vegetação alienígena que começa a tomar conta do terreno e do próprio corpo do fazendeiro, levando-o ao desespero. As caras e trejeitos de King são muito engraçados, mas com a sua interpretação exagerada ele conseguiu gerar empatia por um ser humano cuja vida é tão marcada por fracassos que o tornou um conformista.


O terceiro episódio é o meu preferido: "Maré alta" (também traduzido como "Indo com a maré"). Nele, o empresário Richard Vickers (meu saudoso Leslie Nielsen) descobre a traição da mulher Rebecca (Gaylen Ross) com Harry (Ted Danson) e resolve vingar-se de uma maneira cruel: enterra os amantes na praia durante a maré baixa, deixando-os apenas com a cabeça fora da areia, e arma todo um equipamento para transmitir a morte lenta de ambos, assistindo seu afogamento na maré alta no conforto de sua própria casa. Entretanto, uma reviravolta vai colocar o vingativo marido em péssimos lençóis: o casal volta dos mortos para um acerto de contas.


"A caixa", a quarta história, me deixou muito assustado quando vi o filme pela primeira vez, em 1984. O zelador de uma universidade, Mike (Don Keefer) encontra por acaso uma caixa escondida sob uma escada num porão, datada de 1894. Ele comunica a sua descoberta ao professor Dexter Stanley (Fritz Weaver), crente de que pode ser algo de possível importância científica. Mas ao abrirem a caixa libertam uma criatura assustadora que devora carne humana. Mike e outro aluno, Charlie (Robert Harper), acabam sendo despedaçados e devorados pelo monstro. Stanley escapa e recorre ao seu amigo Henry Northrup (Hal Holbrook), também professor, que aproveita a situação para planejar uma revanche contra sua esposa Wilma (Adrienne Barbeau), uma mulher vulgar, alcoólatra, arrogante e debochada que sempre humilha o marido na primeira oportunidade. Uma excelente mistura de humor e medo.


O melhor fica para o episódio final! Em "Vingança barata" (também traduzido como "Elas rastejam sobre você"), E. G. Marshall intepreta Upson Pratt, um bilionário que se isolou do mundo em um apartamento totalmente estéril, cercado por alguns móveis e aparatos tecnológicos que estabelecem sua ligação com o resto da sociedade. Paranóico com limpeza e com pavor de germes, Pratt é uma péssima pessoa, um racista arrogante, capaz de tripudiar sobre o sofrimento alheio: ele comemora o suicídio de um de seus pares e faz pouco caso da viúva chorosa que lhe telefona para amaldiçoá-lo. Durante um blecaute, Pratt acaba encarando seu grande pavor: um verdadeiro batalhão de baratas que aparecem por todos os lados de seu apartamento. A cena final, com as baratas saindo do corpo de Pratt, foi chocante para a época e jamais me saiu da cabeça. Impressionante trabalho de Savini!


Além de King, Tom Savini também faz uma ponta no epílogo do filme, como um lixeiro que encontra a revista "Creepshow" de Billy e percebe que o cupom do pedido de um boneco vodu havia sido recortado dela. Más notícias para o pai autoritário do garoto!

No DVD relançado no final de 2017- um pack que traz também filmes roteirizados ou inspirados em obras de Stephen King "Creepshow 2", "A criatura do cemitério" e "Às vezes eles voltam" -, há um breve especial sobre a origem do filme e alguns bastidores. O melhor de tudo é ver que eu não estava imaginando coisas: o tal cinzeiro usado por Bedelia para matar seu pai aparece em todas as histórias! A imagem está perfeita, e vale a pena ter o lançamento como item de colecionador.


Depois do bom trabalho em "Creepshow", cinco anos depois Romero produziu sua continuação, "Creepshow 2", que acabou ficando muito aquém da qualidade do original, com histórias fracas, elenco sofrível (principalmente no episódio "A balsa", com atores ruins de doer) e falta da característica gráfica típica das HQs do primeiro. Totalmente dispensável.

segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

MINISSÉRIES: "Ventos da guerra" (The winds of war, 1982) e "Lembranças de guerra" (War and remembrance, 1988)


Elenco de "Ventos da guerra", que foi trocado em sua maior parte na sequência, "Lembranças de guerra"


A primeira vez que eu tive alguma visão dessa adaptação da volumosa obra de Herman Wouk foi quando, anos atrás, assisti a alguns trechos da minissérie "War and remembrance" (Lembranças de guerra") no documentário "Imaginary witness: Hollywood and the Holocaust", exibido pela HBO, cujo tema era o tratamento dado à perseguição e extermínio do povo judeu europeu pelo nazismo na produção cinematográfica após o final da Segunda Guerra Mundial. Eram cenas fortes pelo seu realismo: judeus (homens, mulheres e crianças) sendo fuzilados na ravina de Babi Yar, em Kiev, e o desespero de vários outros enquanto morriam dentro de uma câmara de gás em Auschwitz. Bastou isso para ter interesse em descobrir a obra completa.

Depois de muita pesquisa, consegui descobrir onde baixar a minissérie, tanto aquela dos trechos exibidos no documentário quanto sua predecessora, "Ventos da guerra" ("The winds of war"), as duas produzidas e dirigidas por Dan Curtis, com roteiro do próprio Herman Wouk. Não foi uma tarefa nada fácil. Ambas são produções hoje raras, indisponíveis em DVD /BD e streaming, encontradas apenas em sites de compra e venda. Até mesmo os livros dos quais foram adaptados só são encontrados em sebos (foi assim que os consegui).

"Ventos da guerra", exibido no Brasil pela rede Globo como "Sangue, suor e lágrimas", creio que em 1983 ou 1984, trazia um elenco muito bom, com atores veteranos e outros que estavam despontando para o sucesso naqueles anos: Robert Mitchum, Ali McGraw, Topol, Jan-Michael Vincent, Polly Bergen, Victoria Tennant e tantos outros. Entretanto, "Lembranças de guerra", a segunda parte da saga das famílias Henry e Jastrow, produzida cinco anos depois, trouxe mudanças em parte do elenco, o que, para quem só veio assistir tudo após quase três décadas da exibição original, causou um pouco de estranheza, uma vez que eu já havia me acostumado com os intérpretes anteriores. Mas são coisas da indústria do entretenimento, portanto, aceitáveis ainda que com restrições (nada a ver com o talento do elenco substituto, irrepreensível).
Jan-Michael Vincent como Byron Henry e Ali McGraw como Natalie Jastrow em "Ventos da guerra"

A minissérie toda é focada na trajetória de personagens de duas famílias do início ao fim da Segunda Guerra Mundial. Os Henry (Victor, sua esposa Rhoda e seus filhos Byron, Madeline e Warren) são ligados à Marinha norte americana; os Jastrow (o escritor Aaron, sua sobrinha Natalie), são judeus que vivem em Siena, na Itália. Antes da invasão da Polônia pela Alemanha, que deflagra o conflito mundial, Byron Henry (Jan-Michael Vincent, substituído na sequência por Hart Bochner em razão de outros compromissos profissionais - segundo se diz) aceita trabalhar como assistente do professor Aaron Jastrow (John Houseman, que faleceu depois e foi substituído na sequência por John Gielgud). Na cidade italiana, conhece e se apaixona por Natalie Jastrow (Ali McGraw, substituída na segunda parte por Jane Seymour), sobrinha do professor, namorada do secretário da embaixada americana na Itália, Leslie Slotes (David Dukes). A história do envolvimento de ambos vai se misturar com os primeiros anos da guerra na Europa e a opressão gradual da população judaica em todo o continente.

Enquanto isso, o pai de Byron, Victor "Pug" Henry (Robert Mitchum) observa como oficial da Marinha os fatos que gradualmente levarão os Estados Unidos a entrarem na guerra. Ele é casado com Rhoda (Polly Berger) e pai também de Madeline (Lisa Elbacher, substituída depois por Leslie Hope) e Warren (Ben Murphy, trocado na sequência por Michael Woods), aviador. A relação familiar acaba ficando complicada pela guerra, gerando triângulos amorosos com Palmer Kirby (Peter Graves) e Pamela Tudsbury (Victoria Tennant), filha do jornalista Alistar Tudsbury (Michael Logan, substituído por Robert Morley na continuação).

Jane Seymour como Natalie Henry e John Gielgud como Aaron Jastrow em "Lembranças de guerra"

"Ventos da guerra" termina com o ataque a Pearl Harbor, em dezembro de 1941, e a entrada da nação norte americana na guerra contra Hitler. Além disso, mostra o início do Holocausto, com os fuzilamentos em massa de judeus da cidade de Minsk, na Bielorrússia então recém invadida pelos nazistas, fato documentado em fotos pelo judeu Berel Jastrow (Topol), primo de Natalie. Uma sequência não tão gráfica quanto aquelas vistas em "Imaginary witness", mas não menos chocantes.

"Lembranças de guerra" inicia justamente nos primeiros dias após o ataque à base naval norte americana, e a partir daí o pesadelo da guerra começa a atingir as famílias, provocando desencontros, sobretudo entre Byron, agora membro da frota de submarinos dos Estados Unidos, e Natalie, ambos casados e com o primeiro filho nascido, Louis. A partir daí as  histórias dos Henry e dos Jastrow correrão paralelas e em alguns momentos irão se cruzar em meio ao desenrolar da guerra, do aumento das perseguições nazistas, da execução do Holocausto e das tentativas de denunciá-lo ao mundo, das operações fracassadas para matar Hitler e dos conflitos amorosos e familiares de ambos os lados.

Com mais de 30 anos de idade, as duas produções ainda podem ser vistas atualmente como um ótimo trabalho de reconstituição de época, utilizando imagens de documentários e efeitos considerados hoje ultrapassados, principalmente miniaturas nas sequências de batalha no oceano Pacífico. Mas superando isso há também um elenco de apoio que parece ter sido escolhido a dedo para interpretar os personagens históricos reais: Ralph Bellamy como o presidente Franklin Roosevelt, Günter Meisner ("Ventos") e Steve Berkoff ("Lembranças") como Hitler, entre outros. Mas os que mais me chamaram a atenção, já na sequência "Lembranças da guerra", foram os atores Milton Johns como Adolf Eichmann, pela sua semelhança física com o executor do Holocausto, e Günther Maria Halmer, intérprete do comandante de Auschwitz, Rudolph Hoess - personagem que ele já havia interpretado antes em "A escolha de Sofia", de 1982.

As duas partes da minissérie servem como um importante registro histórico da Segunda Guerra Mundial, sobretudo o que se relaciona com o Holocausto, mostrando as engrenagens propulsoras de um dos crimes contra a humanidade mais horríveis já cometidos em razão de sua concepção e execução quase industrial. Vale a pena procurar pela internet os links disponíveis. Mais difícil, porém não impossível, é achar legendas compatíveis, principalmente para "Ventos da guerra", pois nos capítulos finais localizei apenas legendas sem sincronia ou divididas em dois arquivos, complicando assistir, pois cada capítulo tem a duração de um filme normal (alguns chegam a quase duas horas e meia). Mas o resultado vai ser satisfatório, no final das contas. É uma volta aos anos 1980 que vale muito a pena.

VIAGEM: Cabaceiras, PB (06/04/2024)

Pela terceira vez viajei à Paraíba nas férias - e a primeira vez com meu marido Érico -, e essa foi a oportunidade de realizar um sonho, alé...