Lançado em 1985, o livro "O conto da aia" (título original "The handmaid's tale"), de Margaret Atwood, é uma obra atemporal. Tanto o é que em 1990 foi adaptado para as telas (com Faye Dunaway, Natasha Richardson e Robert Duvall) e, este ano, ganhou uma versão em forma de série, lançada em abril passado pelo serviço de streaming Hulu, ainda indisponível para brasileiros. Mas a fama dessa nova adaptação chegou aqui primeiro, e por meio de downloads via torrent ou até mesmo em uma busca pelo YouTube e outros serviços de streaming, foi possível assistir uma das melhores séries já lançadas este ano.
O enredo de "The handmaid's tale" é apavorante: em um futuro incerto, as taxas de natalidade despencaram em todo o mundo, fato atribuído aos avanços tecnológicos e à depredação do meio ambiente. Nos Estados Unidos, instala-se uma teocracia totalitária e ultraconservadora, fazendo o país desaparecer para dar lugar à república de Gilead. Nela, revistas, celulares, televisores e outras modernidades deixaram de existir. Nesse mundo regresso, a doutrina cristã é imposta por meio do domínio sobre as mulheres, da perseguição a homossexuais ("traidores de gênero") e da institucionalização do estupro como forma de dar continuidade à espécie humana por meio das Aias - mulheres férteis que são recrutadas apenas com a finalidade de gerar filhos para seus senhores, com a conivência e a participação de suas esposas (teoricamente inférteis).
Nesse mundo pavoroso que remonta aos piores momentos da Idade Média, June (a excelente Elisabeth Moss, de "Mad men") é capturada ao tentar fugir para o Canadá com seu marido Luke (O. T. Fagbenle) e a filhinha de seis anos Hannah (Jordana Blake). A menina é levada e Luke é dado como assassinado pelo exército de Gilead. June perde seu nome e, após passar por um "treinamento" para se tornar Aia, transforma-se em Offred, pertencente ao comandante Fred Waterford (Joseph Fiennes) - daí o nome que faz referência à posse (De Fred) - e sua esposa Serena Joy (Yvonne Strahovski, de "Chuck"). Sob a ladainha diária de orações e o sexo forçado a cada mês na tentativa de gerar um filho para o casal Waterford, June/Offred conhece aos poucos a rotina das Aias, a opressão que passam nas mãos de seus "proprietários" e das Tias (as mulheres que recrutam e ensinam as Aias sobre suas novas "funções"), e lida com o desespero da ausência de de Hannah, levada para lugar incerto.
Na república de Gilead, os "traidores de gênero", os que resistem à nova ordem e os que cometem atos considerados como crimes na interpretação literal dos escritos bíblicos são executados (enforcados ou apedrejados) e tem seus cadáveres pendurados em vias públicas, quando não são mutilados - o que vale até mesmo para os próprios senhores de Gilead. Ao mesmo tempo em que testemunha esses horrores, June/Offred também toma conhecimento de um movimento clandestino de resistência, o May Day, por meio da Aia Emily/Ofglen (Alexis Bledel, em uma participação sensacional); reencontra sua melhor amiga Moira (Samira Wiley, a Poussey de "Orange is the new black"), também uma Aia; aproxima-se de Nick (Max Minghelia), motorista dos Waterford; e conhece também Rita (Amanda Brugel), uma Martha - como são chamadas as governantas dos comandantes - na casa dos Waterford. Tanto Moira quanto Emily são lésbicas, o que lhes expõe a mais perigos em Gilead.
"The handmaid's tale" tem, sim, um discurso feminista, mas, acima disso, é um alerta sobre a perda da dignidade humana diante de regimes totalitários que esmagam a liberdade individual e eliminam o livre arbítrio, mas não abrem mão de seus próprios "prazeres proibidos", tornando a nova república um verdadeiro regime de hipocrisia religiosa. Em seu cativeiro, June aos poucos começa a despertar e se utilizar de artimanhas arriscadas para tentar sair daquele mundo repressor irracional. Mas até aí ainda vai passar por situações constrangedoras e violentas nas mãos de Serena, da Tia Lydia (Ann Dowd) e dos Olhos (como são chamados os vigilantes de Gilead).
A primeira temporada teve dez episódios, nos quais flashbacks mostram o processo de extinção da república democrática dos Estados Unidos e as vidas dos personagens antes da mudança radical em seus destinos. A segunda terá três episódios a mais e deve estrear no primeiro semestre de 2018. Difícil vai ser controlar a ansiedade depois de tantas revelações e reviravoltas no season finale.
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