quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Comentário: "Dogville" (2003)


Se existe um filme que expõe com crueza o caráter volátil da natureza humana, com sua linha confusa entre o inocente e o perverso, ele foi feito por Lars von Trier em 2003. A história (trágica, segundo o narrador) da pequena e fictícia Dogville, em algum ano da década de 1930, pode ser a de qualquer outra cidade real: humana, solidária e, no final das coisas, repulsiva e destruidora. Não é fácil assimilar a mensagem - ou a série de mensagens, dependendo do espectador - que a película se propõe a transmitir sobre a ausência de limites entre bem e mal: todas essas índoles se misturam ou se completam. 

"Dogville", dividido em dez partes como é costume do diretor, trata da chegada da bela e doce Grace (Nicole Kidman) a esse vilarejo no interior dos Estados Unidos. Trata-se de uma mulher que foge supostamente de bandidos e é acolhida secretamente pelo aspirante a escritor Tom Edison (Paul Bettany). Encantado pela jovem, Tom acaba convencendo o restante dos moradores da aldeia a escondê-la, apesar das desconfianças de todos. Grata, Grace se oferece para trabalhar para cada um dos habitantes como forma de "pagamento" pelo silêncio: cuida das crianças de Vera (Patricia Clarkson) e Chuck (Stellan Skarsgard) e lê para o cego Jack McKay (Ben Gazzara), entre outros favores. E no meio disso, Tom Edison apaixona-se cada vez mais por Grace, mas ambos mantêm o romance escondido, como para tentar protegê-la das reações dos demais moradores - na verdade, para proteger a si.

Certo dia surgem cartazes da polícia em Dogville, com a imagem de Grace. É o estopim para que os moradores da pequena cidade comecem a cobrar da jovem refugiada uma dívida maior pelo seu silêncio. Temerosa e sempre condescendente, Grace acaba se tornando alvo do que há de pior em cada um daqueles habitantes: a mesquinhez, a exploração, a arrogância, o assédio moral, a mentira e a violência sexual. Até a inocência das crianças é mera fachada: elas conseguem ser tão ou mais desprezíveis que os adultos de Dogville. O ponto alto do filme é a chegada dos gângsteres de quem Grace tanto se escondera, sua descoberta e um acerto de contas final inesperado.

O que faz o charme de "Dogville" é a leitura que ele permite. Como não há cenários nem locações - como se fosse uma peça teatral sendo gravada, com riscos e desenhos no chão delimitando casas, objetos e plantações -, com poucas coisas reais, pode-se considerar isso como um indício de cumplicidade dos moradores do vilarejo com tudo o que vai se desenrolar durante a trama, principalmente os abusos de caráter sexual. Bacana ainda é ver atores veteranos de peso no elenco, como Lauren Bacall e Philip Baker Hall.

Cada capítulo do filme acrescenta um nível a mais de tensão para quem o assiste. Por conta disso, levei uns quatro dias para terminar de assisti-lo. Pena, ódio, revolta, solidariedade - tudo isso foi se misturando a cada aventura e desventura de Grace, até o final, onde se vê que a alma humana revestida de compaixão pode, sem sutilezas, gerar monstros vingativos e cruéis que nada irão poupar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

VIAGEM: Cabaceiras, PB (06/04/2024)

Pela terceira vez viajei à Paraíba nas férias - e a primeira vez com meu marido Érico -, e essa foi a oportunidade de realizar um sonho, alé...