- CONTÉM SPOILERS SOBRE O LIVRO E A SÉRIE -
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É preciso, inicialmente, estabelecer um elo interessante entre o livro de Margaret Atwood e sua adaptação televisiva de 2017: um acaba complementando o outro, preenchendo lacunas e diminuindo a angústia que se pode sentir na história contada em primeira pessoa por Offred, único nome pelo qual a personagem é identificada na obra escrita. Assim, fica difícil até eleger o que é melhor: se o livro, que nos permite uma viagem intimista pelos pensamentos da Aia condenada à servidão e submissão, ou o filme, que revela os destinos sobre personagens apenas citados nas lembranças da jovem - seu marido Luke e sua filhinha, de quem foi separada após sua tentativa frustrada de fuga para o Canadá, e a mãe -, sempre incertas sobre os rumos que tomaram após o desaparecimento dos Estados Unidos e a ascensão da república de Gilead.
Offred - cujo nome real não é revelado no livro, enquanto na série foi batizada como June (e no filme de 1990, como Kate) - começa a contar ao leitor seu dia a dia na convivência com o Comandante e a esposa Serena Joy, como Aia do casal. Em Gilead, estado teocrático, totalitário, militarizado em constante guerra, as Aias são mulheres férteis selecionadas (geralmente solteiras, feministas e amasiadas) e preparadas para o único papel de reprodutora, já que as taxas de natalidade caíram assustadoramente nesse futuro hipotético - resultado de radiação. Em uma reprodução patética literal de uma passagem bíblicas (em que a mulher de Jacó, Raquel, estéril, oferece sua criada ao marido para que ela pudesse conceber e assim lhes dar filhos "sobre seus joelhos"), elas participam de um ritual sexual bizarro no qual são estupradas pelo seu comandante sob o olhar da esposa, teoricamente infértil (o machismo de Gilead não admite a infertilidade masculina). E bizarrice não falta nesse novo mundo criado: há rituais para execuções de desafetos (os "salvamentos") e para o nascimento das crianças geradas pelas Aias, entre outros.
Assim, nessa aparente conversa com o leitor, a Aia vai mostrar sua rotina diária, interrompida aqui e ali pelas lembranças da sua vida com Luke, como se tornaram amantes e depois se casaram após o divórcio dele, a filha de ambos, as mudanças graduais que começaram a acontecer na sociedade e culminaram no extermínio do presidente americano e todo o congresso, resultando daí a república de Gilead, fundamentada na interpretação literal dos escritos bíblicos mas que ainda esconde uma fachada depravada (como bem o mostra a existência e o funcionamento do bordel Casa de Jezebel). Nessa nova ordem, revistas e leitura são proibidos a ponto de placas de estabelecimentos serem identificadas apenas por desenhos; nas novas castas surgidas, as Tias são responsáveis pela doutrinação e controle das aias, numa verdadeira lavagem cerebral que não raro usa a violência física e psicológica; e as Marthas são relegadas aos afazeres domésticos.
É nessa cumplicidade estabelecida como o leitor que reside a angústia de "O conto da Aia": Offred expõe seus sentimentos, seus conflitos e dúvidas. Como só temos contato com a realidade absurda e apavorante de Gilead através de seus relatos, compartilhamos de sua agonia em não saber o que houve com Luke, sua filha, sua mãe (personagem que não aparece na série, pelo menos na primeira temporada), sua amiga Moira e Ofglen, de quem se aproxima depois de uma certa desconfiança (afinal, Aias podem ser submissas ao extremo a Gilead, e mesmo cúmplices no controle autoritário de comportamentos e atitudes. Uma passagem em que as Aias são estimuladas a lincharem um homem - supostamente acusado de estupro e assassinato, em uma solenidade pública, prova bem isso). Em determinado momento, Offred imagina várias hipóteses sobre o destino de Luke: pode estar morto, pode ter conseguido atravessar a fronteira, pode estar aprisionado em algum lugar da nova república. Em outros episódios, ela se mostra insegura e até mesmo se julga conforme suas ações (como a aproximação súbita com o Comandante, da qual imagina poder tirar algum proveito). No filme, sabemos, Luke foi ferido na fuga, conseguiu sair do país e começa a busca por Offred; a filha de ambos, batizada de Hannah na adaptação, passou a ser criada em Gilead; e Moira conseguiu empreender uma fuga espetacular e reencontra Luke. Aqui cabe citar mais uma diferença entre livro e série: o marido de Offred é branco, assim como sua filha e Moira. Na adaptação, a mudança da etnia imprimiu um tom mais dramático e reflexivo à trama.
Para concluir, Margaret Atwood nos brinda com um epílogo que se passa em 2195, quando aparentemente a república de Gilead deixou de existir e todos os fatos ocorridos da sua ascensão até sua derrocada são objetos de estudo em uma convenção de pesquisadores em uma outra situação histórica, onde as gravações feitas por Offred (sim, no final das contas suas palavras eram realmente faladas, registradas em fitas) foram encontradas enterradas e fazem parte do material a ser analisado. Como prova a nossa própria História, Gilead e seu retrocesso moral, político e social passaram (ou ainda passarão?) e também ficaram (ficarão?) relegados a registros históricos a serem recuperados para compreensão do novo presente.
Preciso ler e assistir tal livro e série.
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