Se existe um filme que expõe com crueza o caráter volátil da natureza humana, com sua linha confusa entre o inocente e o perverso, ele foi feito por Lars von Trier em 2003. A história (trágica, segundo o narrador) da pequena e fictícia Dogville, em algum ano da década de 1930, pode ser a de qualquer outra cidade real: humana, solidária e, no final das coisas, repulsiva e destruidora. Não é fácil assimilar a mensagem - ou a série de mensagens, dependendo do espectador - que a película se propõe a transmitir sobre a ausência de limites entre bem e mal: todas essas índoles se misturam ou se completam.

Certo dia surgem cartazes da polícia em Dogville, com a imagem de Grace. É o estopim para que os moradores da pequena cidade comecem a cobrar da jovem refugiada uma dívida maior pelo seu silêncio. Temerosa e sempre condescendente, Grace acaba se tornando alvo do que há de pior em cada um daqueles habitantes: a mesquinhez, a exploração, a arrogância, o assédio moral, a mentira e a violência sexual. Até a inocência das crianças é mera fachada: elas conseguem ser tão ou mais desprezíveis que os adultos de Dogville. O ponto alto do filme é a chegada dos gângsteres de quem Grace tanto se escondera, sua descoberta e um acerto de contas final inesperado.
O que faz o charme de "Dogville" é a leitura que ele permite. Como não há cenários nem locações - como se fosse uma peça teatral sendo gravada, com riscos e desenhos no chão delimitando casas, objetos e plantações -, com poucas coisas reais, pode-se considerar isso como um indício de cumplicidade dos moradores do vilarejo com tudo o que vai se desenrolar durante a trama, principalmente os abusos de caráter sexual. Bacana ainda é ver atores veteranos de peso no elenco, como Lauren Bacall e Philip Baker Hall.
Cada capítulo do filme acrescenta um nível a mais de tensão para quem o assiste. Por conta disso, levei uns quatro dias para terminar de assisti-lo. Pena, ódio, revolta, solidariedade - tudo isso foi se misturando a cada aventura e desventura de Grace, até o final, onde se vê que a alma humana revestida de compaixão pode, sem sutilezas, gerar monstros vingativos e cruéis que nada irão poupar.