sábado, 31 de março de 2012

Comentário: "Fatalidade" (A double life, 1947)


O veterano ator de teatro Anthony John (Ronald Colman) está obcecado por interpretar o personagem Othelo com uma mudança em uma das cenas clássicas da peça de Shakespeare, em que o rei mouro mata por ciúmes sua amada Desdêmona: na visão de Anthony, o estrangulamento da suposta adúltera seria por um beijo. A ideia é bem aceita pelos seus produtores, no entanto o aprofundamento do artista no personagem shakesperiano o atinge de tal maneira que não consegue mais distinguir realidade e ficção.

Esse é o argumento de "Fatalidade", filme dirigido por George Cuckor em 1947, rendendo a Ronald Colman o Oscar daquele ano. É uma história sombria na qual o ator mergulha tanto em seu personagem que perde o equilíbrio entre a arte e a realidade, fundindo a história de Othelo, que cometeu um crime levado por ciúmes, com a do próprio Anthony John - divorciado há dois anos de sua colega de profissão Brita (Signa Hasso), mantém com ela uma bela amizade, abalada eventualmente por sua crise de ciúmes da atriz com o assessor de imprensa Bill (Edmond O´Brien). Tomado por alucinações, a ponto de não conseguir manter-se em eventos da classe sem beirar o histerismo, Anthony encontra em seu caminho a garçonete Pat Kroll (Shelley Winters), com quem inicia um relacionamento e que acaba servindo de válvula de escape do ator para seus delírios cada vez crescentes e violentos.

Todo em preto e branco, "Fatalidade" tem o charme dos film noirs daquela década, sem trazer seus elementos tradicionais, emprestando-lhe somente o espírito sombrio que casa bem com a loucura crescente de Anthony John, um ator que ultrapassa os limites da sanidade ao buscar a perfeição. Lembra um pouco a loucura de Norma Desmond ("Crepúsculo dos Deuses"), embora por razões diferentes: enquanto Norma não seguiu os rumos do novo cinema que sepultou de vez a era muda da sétima arte, entrando em declínio psicológico ao acreditar que o mundo do espetáculo ainda a idolatrava, Anthony se deixou levar pelo sucesso na carreira e busca na perfeição, misturando a ficção de Othelo com sua própria vida de amor platônico pela ex-esposa e quebrando o seu próprio equilíbrio. É no crime cometido e descoberto, no entanto, que Anthony John, definitivamente encarnando Othelo, chega ao ponto alto de sua intepretação. Em sua visão deturpada, incapaz de distinguir realidade e ficção, lhe resta somente esperar a punição autoinfligida.

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