Domingo, quase duas horas da tarde, tempo nublado, mas o calor está cruel e nem me atrevo a imaginar, sequer sondar, qual a temperatura naquele momento. Quase cabisbaixo, refletindo sobre a vida enquanto retorno do almoço para meu trabalho, deparo com aquelas duas peças no gramado defronte a uma casa: um par de sapatos femininos, pretos, lado a lado, um deles emborcado.
E naquele momento, sem mais nada para pensar, e no restante do caminho ao trabalho, dali a alguns meros metros, comecei a imaginar a procedência das duas peças, atiradas ali, uma visão incomum para um domingo nublado e fervente.
Quem seria a dona dos sapatos? Batizei-a de Rebeca. Um nome simples, presente em várias línguas sem dificuldade de pronúncia por conta dos floreios idiomáticos de cada país. Foi minha imediata referência à Rebeca de Daphne DuMaurier, de Hitchcock ou do Novo Testamento. Enfim, naquele momento os sapatos pretos pertenciam a Rebeca.
Morena, loura, cabocla, japonesa, alta, baixa, magra, gordinha, adolescente, madura, que fosse. Rebeca deixara ou esquecera seus sapatos ali, naquele gramado, numa rua com pouco movimento, certamente há horas, provavelmente durante a madrugada. Talvez estivesse tão feliz com a sua companhia afetiva naquele momento que largou-os para fazer o trajeto – seja ele qual tenha sido - com os pés no asfalto, mãos dadas com sua paixão, rindo, pulando, dançando em plena rua, quem sabe?
Ou então aqueles sapatos poderiam ter sido usados contra seu – ou talvez sua – amante, em uma discussão acalorada causada por ciúmes, logo resvalando para uma conversa mais amena e reconciliação, com felicidade tal que os tais adereços já eram dispensáveis no momento e dignos de esquecimento.
Enfim, imaginei várias Rebecas com base naquele simples par de sapatos largados no gramado. De algum modo, ambos deviam ter algum significado, pois não estariam ali simplesmente por estar, deixados propositalmente para serem aos poucos desgastados pela influência do tempo.
Foi então que uma ideia me ocorreu, já praticamente às portas do meu trabalho, ante tantos pensamentos sobre a Rebeca sem rosto e sem forma, mas com a essência que eu insistia em criar. E se não fosse nada daquilo?
E se Rebeca fosse, na verdade, um nome usado por alguém que se chamaria – hipoteticamente – Sebastião, João, Eduardo, Roberto? Logo ali, mais adiante, fica um ponto de prostituição. Certamente o travesti estaria correndo da polícia, de arruaceiros ou, mesmo, perseguindo algum cliente caloteiro. Os sapatos eram o obstáculo a uma correria empreendida, largados naquele trecho apenas para facilitarem uma corrida.
É... os devaneios param por aqui. Preciso é parar de fantasiar e cair na real.
Rebeca que se exploda com seus sapatos perdidos!
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