Todos os anos, em 27 de janeiro, o mundo relembra o assassinato sistemático de milhões de civis inocentes na Europa nazista entre 1939 e 1945. A Segunda Guerra Mundial superou a primeira não apenas pelo maior potencial bélico desenvolvido, mas pela revelação da crueldade com que os seres humanos podem tratar seus semelhantes por diferenças raciais, religiosas, sociais e ideológicas.
Até então, o assassinato em massa da população armênia pelo Império Otomano em 1915 - e até hoje não reconhecido como genocídio pelas autoridades turcas - havia sido um exemplo triste de perseguições executadas por um Estado. Como esquecer ainda o terror afligido aos chineses pelos japoneses? Os judeus, em sua história, sofreram inúmeras perseguições, não raro encerradas em confiscos, expulsões e mortes. Podemos dizer que o nazismo não realizou nada de novo, porém inovou ao transformar o ódio em uma máquina estatal eficiente para aniquilar pessoas - judeus, poloneses, eslavos, ciganos, homossexuais e outras minorias marcadas como indesejáveis e inferiores.
A guerra acabou em 1945 com uma cifra impressionante de mortes por todo o mundo. A revelação das atrocidades contra a pessoa, nos anos posteriores, deveria servir como lição para a necessidade de tolerância e respeito de todas as diversidades. Mas as décadas seguintes mostraram a ineficiência dessa campanha. As barbaridades voltaram a acontecer, não da forma horrivelmente organizada e eficiente como no Terceiro Reich, mas igual em violência sem sentido. Chegamos a massacres isolados no Líbano, no Iraque, e com o passar dos anos chegamos a uma carnificina chocante em Ruanda, em 1994, e aos ataques a cristãos e muçulmanos em vários países. Mas a lição não surtiu efeito.
Estamos em 2017, e pelo menos há dois anos o mundo começou a enfrentar uma onda recrudescente de ódio irracional e cego. Xenofobia, falta de solidariedade, racismo, preconceito, perseguição a negros, mulheres e homossexuais... A semente do mal nunca morreu e tem encontrado, infelizmente, solo fértil, e pior de tudo: de uma forma absolutamente previsível.
Na vasta literatura sobre o Holocausto - um fenômeno que impressionou pela organização eficiente de um crime "consentido" -, uma das causas da ascensão do nazismo até o seu ponto de expansão do domínio territorial e a consequente destruição de povos "não arianos" é apontada como sendo a crise econômica estabelecida na Alemanha desde o final da Primeira Guerra Mundial. Hoje não temos uma crise provocada por uma guerra devastadora em nível global, mas sim pela falência das instituições, pela falta de compromisso e ética dos poderes públicos, pela corrupção, pela injustiça social e pela manipulação ideológica (exatamente como Joseph Goebbels fez para ressuscitar o mais ferrenho antissemitismo e o ódio contra as minorias até nas nações conquistadas pelo Terceiro Reich). Na falta de confiança nos poderes que deveriam defender valores sociais de todos surge um campo vasto para oportunistas de discursos intolerantes.
Nos Estados Unidos, Trump foi eleito presidente e já começou a era dos desastres administrativos e diplomáticos em menos de um mês no que se refere ao tratamento com outras nações. É um discurso pífio semelhante ao divulgado na Europa com a corrente crescente de refugiados imigrantes. A prova dessa estupidez que anula a razão está no menino algemado em Washington D.C. por ser considerado uma "ameaça à segurança nacional" em seus cinco anos de idade - um raciocínio parecido foi usado pelos nazistas para justificar o massacre de criancinhas (inclusive bebês recém nascidos) judias e pelos hutus para trucidar com facões as crianças tutsis em Ruanda, para citar dois exemplos.
No Brasil a semente da intolerância sempre esteve meio adormecida, despertando aqui e acolá, principalmente no campo religioso. O maior expoente disso, até agora, havia sido o chute na estátua de Nossa Senhora Aparecida, desferido pelo "bispo" Sérgio von Helde, da Igreja Universal do Reino de Deus em um programa de televisão, em 1995. Aos poucos, o ódio alcançou os umbandistas e os católicos com a depredação de imagens de santos e de lugares de culto. Estimulados por uma onda "neomoralista" baseada nos valores abstratos da religião que agora ensaia uma teocracia excludente e assassina, esses tentáculos envolveram a população LGBT e, recentemente, transformaram as diferenças ideológicas políticas em guerra psicológica violenta, na qual falta pouco para surgirem cenas semelhantes às brigas de torcidas promovidas por marginais sem noção nos estádios de futebol, com resultados até fatais.
Parece não haver esquerda nem direita, nem seus extremos. Sob essa polaridade, há muitos guerrilheiros com sede de sangue, os quais se consideram pessoas de bem e respeitadores do próximo - desde que este concorde cegamente com suas ideias. Falta pouco para a selvageria se instaurar nas ruas. Enquanto os cidadãos se matam, no circo armado outros se dão muito bem com isso. E os discursos vazios e histéricos se sucedem reunindo mais e mais adeptos movidos pela insatisfação concebida pela incompetência justamente dos autores dos discursos. E nas beiradas estão os vendilhões da fé, praticantes de um estelionato imoral e gritante, mas transformado em fato normal e até objetivo de vida para muitos iludidos.
Não há exagero em afirmar que no ciclo de repetições da História o mundo está prestes a ingressar em uma nova Idade Média, a Era das Trevas. Os fatos ao longo dos anos comprovam isso. A tecnologia das redes sociais virou arma para calúnias transformadas em verdades inegáveis. Tudo por causa do ódio cego que está vencendo a capacidade de raciocínio e análise do ser humano. Enquanto isso, aquela lição do Cristianismo virou agora uma pergunta feita com ar de repulsa e incredulidade pelos "cidadãos de bem": "Amai-vos uns aos outros?".